Será possível comunicar com uma pessoa que mete "cocó" em todas as frases?
O meu filho tem 4 anos e já consigo ter com ele um diálogo competente, mas a comunicação entre nós ainda padece de algumas limitações.
Por vezes, quando estou ao pé dele sinto-me quase o Robinson Crusoe com o Sexta-Feira. Dois seres que se encontram e que tentam estabelecer uma relação, falar a mesma língua, mas que têm muita coisa a separá-los. Desde logo percebo que vivemos em realidades diferentes quando ele se vira para mim e diz: “Papá, sabias que a avó é um carro? A avó é um Toyota.”
Claro que eu podia tentar encetar um diálogo com ele nesta base, dizendo: “Não, olha que eu acho que a avó é um Subaru. Um Subaru Impreza. E a tia é uma Nissan Vanette.” Mas soaria sempre a falso, porque a verdade é que não domino o universo das analogias entre familiares e carros japoneses. De qualquer maneira, ele demonstra alguma lucidez, porque pouco depois pergunta: “Papá, o que é um Toyota?” Pergunta pertinente. O que é afinal um Toyota? Talvez seja a fusão do Toy com uma marmota. Não sei. Acho que prefiro não saber.
O facto é que o meu filho permanece um mistério para mim. Quando sinto uma animosidade estranha da parte dele, tento sondar aquela criatura minorca de ar apalermado e penso: “Será que já está no Complexo de Édipo?” Se calhar já atravessou essa fase e não dei por nada. O ideal seria que a criança nos avisasse nos dias de Complexo de Édipo, um pouco como a mulher e o período: “Papá, hoje não fales comigo que estou com o Complexo de Édipo.” “Ok.” Assim eu já sabia. De qualquer maneira, estou a pensar clarificar as coisas com ele e um dia destes digo-lhe: “Vê se metes uma coisa na cabecinha, miúdo, a tua mãe é minha, percebes? Minha! Portanto, esquece lá isso e vê se passas já à fase anal ou lá o que é.” “A fase anal já foi, papá.” “Está bem. Então passa à fase abdominal. Ou outra qualquer! Não me chateies!”
Outras vezes, penso que se me relembrasse de como era com 4 anos talvez conseguisse fazer melhor a ponte com ele. Porque é a partir dessa idade que começo a ter algumas memórias de jeito. Ou seja, podia tentar a abordagem da empatia, de tentar colocar-me no lugar dele. Mas logo a seguir, num rebate de lucidez, penso: “Tenho mais que fazer!” O meu instinto parental diz-me para salvaguardar as devidas distâncias hierárquicas da criatura. Não quero cá confianças com uma pessoa que mete a palavra “cocó” em cada frase que diz. “Cocó” para ele é adjectivo, substantivo e sentido de vida: “És um cocó”, “vai para o cocó”, “tens de cocó o cocó.”
Mas seja, por esta vez abro uma excepção e vou experimentar fazer esse exercício regressivo. As únicas memórias que tenho a certeza que vivi com 4 anos são do jardim-de-infância. Porque havia uma sala diferente para cada ano e as recordações estão bem compartimentadas na minha cabeça. Lembro-me da minha educadora dos 4 anos, a Madalena, de quem gostava bastante e que contava sempre as mesmas histórias, com as quais eu vibrava sempre como se fosse a primeira vez. A história do “Pedro e o Lobo”, então, foi contada até à náusea. Acho que até eu na altura pensei: “Bem, esta história já foi contada um disparate de vezes”. Mas, mesmo assim, o entusiasmo não esmorecia. O que comprova a teoria de que as crianças são seres que precisam da repetição. Se uma criança visse, por exemplo, o filme do “Nemo” ininterruptamente de manhã à noite, chegava ao fim do dia e dizia: «Posso ver o filme do “Nemo”?»
Lembro-me também que ciclicamente os rapazes formavam uma roda no recreio do jardim-escola para discutir quem tinha o pai ou o tio mais forte. Geralmente ganhava aquele que dizia: “E o meu tio tem um pastor alemão e mata-vos a todos!” Ter um pastor alemão era aparentemente algo de muito ameaçador e muito valorizado naquela altura. Se a Guerra Fria fosse definida por miúdos de 4 anos, o poderio bélico não se media pelo número de ogivas nucleares, mas sim pelo número de pastores alemães per capita. E provavelmente depois de 1989 seria necessário proceder ao desmantelamento de pastores alemães. O que é certo é que se alguém no meio da roda disparasse “E o meu pai é o Gandhi!”, não impressionava ninguém.
Também tenho ideia que nessa idade era um molenga de primeira a comer. A minha boca parecia o tambor da máquina de lavar, de tal maneira a comida rebolava infinitamente de um lado para o outro. Acho que o quimo se formava directamente na minha boca, por incrível que pareça. No entanto, isso não me faz sentir mais empático com o meu filho quando o vejo a enrolar os brócolos de um lado para o outro. O mais certo é dizer-lhe carinhosamente: “Despacha lá isso!” Pelo que me pergunto se isto da empatia é produtivo. Por mais exercícios regressivos que faça nunca conseguirei ter acesso àquilo que sentia ou à forma como pensava com 4 anos. Para dizer a verdade, acho que só me lembro daquilo que sentia para aí a partir dos 14 anos. Ou seja, tenho de esperar pelo menos dez anos para poder comunicar decentemente com o meu filho. Sendo que nessa altura ele já não vai querer comunicar comigo.
Estamos destinados a viver em mundos separados, eu e ele. E o pior é que nem sequer coincidimos nos gostos. A coisa que ele mais adora é brincar com carrinhos e eu prefiro levar um tiro de um amigo – como diz a célebre carta do Monopólio – a ter de brincar aos carrinhos com ele. Às vezes penso que haverá sempre um fosso irremediável entre nós. Não há muito que se possa fazer. Quer dizer, eu até posso. Posso inculcar-lhe umas memórias falsas, para pelo menos branquear algumas falhas da minha parte. Há até dias em que penso “Hoje vou inculcar-lhe uma memória falsa!” E ganho logo outro ânimo para a vida. Por isso, daqui por 2 ou 3 anos vou começar a dizer-lhe: “Lembras-te de quando brincava contigo aos carrinhos? Aquilo é que era, hã! Grande pândega!” E depois, se ele fizer um ar descrente, atiro-lhe com um indignado “Não te lembras?! Tu com o Toyota e eu com o Subaru!”