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Gonçalves

Por vezes custa-me sair do útero

O útero é o carro. Pelo menos é assim que vejo o carro às vezes. Especialmente nos momentos em que a última coisa que me apetece é sair lá de dentro, depois de estacionar. Estou ali tão bem naquele aconchego, a ouvir música ou a ouvir rádio, ou apenas em silêncio, abstraído das merdices da vida, que a ideia de abrir a porta se me afigura como uma violência, uma desumanidade atroz, porque implica enfrentar todo o tipo de adversidades: frio, chuva, calor, arrumadores, parquímetros, cocós de cão de formatos vários, vizinhos de formatos vários, compromissos laborais, o recibo verde por preencher, o autoclismo avariado, o IRS, o IVA da restauração, pessoas chatas, pessoas em geral, tudo em geral. E nos dias em que me ataca um pouco mais de stresse ou melancolia fica ainda mais difícil sair do bem-bom automóvel. Quase me apetece chorar como um bebé. Não quero sair. Não quero.

É assim que se percebe que os bebés são um bocado estúpidos, porque se soubessem o que os espera cá fora, ao saírem da barriga, desatavam logo a chorar no útero. O poder de antecipação não é o forte deles. Felizmente que, da perspectiva deles, muitos têm cá fora à espera esse útero Parte II que é o carro. Não terá a mesma qualidade do útero original, mas não deixa de ser uma bolha quentinha e móvel que nos embala e nos leva de um lado para o outro, aparentemente protegidos do mundo que nos rodeia, como as barrigas das mães. Não deve ser por acaso, digo eu, que muitos bebés adormecem tão bem nos carros. E os adultos também. Incluindo os que vão ao volante.

Fui googlar o que diziam outros sobre a ligação entre carros e úteros e descobri que havia desde pessoas que apodavam o seu carro familiar de “útero” até um filósofo (fica sempre bem ter um filósofo na lista), Peter Sloterdijk, que chama os carros de “úteros com rodas” e que diz que aquilo que distingue os automóveis do útero materno é o facto de poderem ser conduzidos e de caberem lá adultos. Ou seja, segundo ele, o carro dá-nos a possibilidade de andarmos numa espécie de barriga de mãe a vida toda e até de a conduzimos. O que pode ser melhor do que isto? Retira-se a mãe da equação – sem ofensa, mães – e ficamos com um útero inteiramente por nossa conta, para levarmos onde quisermos.

Ainda por cima, hoje em dia há excelentes úteros com rodas. Quando eu comecei a andar de popó, nos anos 70/80, os carros pareciam-se muito mais com umas latas. Lembro-me de andar, por exemplo, na saudosa Renault 4L, com as suas portas estreitas que faziam um tlac agudo e metálico ao fechar. Enquanto agora fechamos as portas espessas dos carros modernos e ouve-se um trum, grave, sólido, senhor de si. Os carros são mais autoritários hoje em dia e nalguns aspectos até mais seguros e mais confortáveis do que uma barriga de gestação. Um bebé no útero materno por acaso tem um sistema de som com várias colunas que pode comandar? Ou airbags múltiplos, ar condicionado xpto, assento reclinável? Até há carros com vidros à prova de bala, esse grande avanço civilizacional (a propósito, para quando uma barriga de mãe à prova de bala? Nunca se sabe, pode dar jeito). Com tanto conforto, como é que uma pessoa há-de querer sair do carro?

Vejo nos fóruns online do Reddit que não estou sozinho neste padecimento, há muita gente para quem o carro é uma autêntica armadilha de urso, da qual é muito difícil sair. A acreditar nos testemunhos intimistas destes fóruns, há quem chegue a fazer xixi para uma garrafa ou outro recipiente por estar paralisado de ansiedade e não conseguir sair do carro. Há mesmo quem declare andar com saco-cama e almofadas no carro para lá fazer uma sesta, caso o excesso de stresse não lhe permita abandonar o seu útero móvel. Estes serão casos mais extremos, mas há uma grande quantidade de gente que confessa prolongar a sua estadia no carro durante 5, 10, 30 minutos ou mais depois de estacionar, adiando compromissos e afazeres. Nalguns casos será apenas um saudável período de descompressão, noutros já entra no domínio do patológico.

O que vale é que também há nestes fóruns uma série de preciosos conselhos para ultrapassar a dificuldade em sair do carro. A saber:

- Ingerir líquidos em barda para ficar com a bexiga a explodir e ser obrigado a sair do carro para aliviar águas algures. Parecendo que não, esta é das sugestões mais populares. Embora não se aplique, claro está, a quem pondere mictar para um recipiente dentro do carro.

- Fazer um pouco de meditação antes de enfrentar o mundo exterior. Há quem seja mais específico e aconselhe o método de meditação Mokuso, usado em artes marciais japonesas, porque, como é sabido, há sempre uma arte marcial que nos resolve os problemas do espírito.

- Pôr um despertador no telemóvel, definindo o tempo de recreio no carro, e atirar o dito aparelho para o banco de trás como quem lança uma granada amiga, de modo a não podermos cancelar o alarme e ficarmos à mercê de ruídos ensandecedores até abandonarmos o veículo de vez.

- Usar o método dos pequenos passos: 1. Respirar fundo 2. Pôr a mão no manípulo da porta do carro 3. Abrir a porta (este claramente o passo mais difícil) 4. Pôr um pé fora 5. Pôr dois 6. Bater com a mão na testa, porque nos esquecemos do telemóvel no banco traseiro do carro 7. Ir buscar telemóvel e aproveitar para fechar a porta. Ok, reconheço que a partir do 6. comecei a abardinar (informação extra: o meu corrector ortográfico desconhece “abardinar” e sugere-me “ajardinar”).

- Sair do carro a ouvir música ou um podcast, para facilitar a transição carro-mundo. O que me faz pensar que se os bebés saíssem da barriga da mãe a ouvir a Smooth FM talvez não protestassem tanto cá fora.

Há mais dicas boas como estas, mas não vos maço mais, porque acho que já temos aqui um bom leque de soluções.

No meu caso, dispenso o método urinário e as artes marciais, o alarme ininterrupto assusta-me e a música de transição não me diz muito. Talvez alinhasse no método dos pequenos passos – excluindo os dois últimos, concedo. Mas o método que tem sido mais eficaz ao pé de casa é o chamado “fórceps social”, ou seja, os vizinhos. Porque há sempre um que me vê no carro. Reconhece-me e não diz nada ou então, pior ainda, acena-me. Sinto-me apanhado, autoconsciente, com a minha bolha interior furada. Começa a ser estranho ficar mais tempo ali dentro. E lá me arrasto para fora do uteromóvel num doloroso parto autoinduzido. Nada como a pressão social para nos fazer mexer o rabo. Acho que também devia arranjar um vizinho para me acenar na cama, no sofá ou no duche, sempre que me demorasse demais nestes sítios.

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