Nostalgia em tempos de tablet
Por volta dos meus vinte e poucos anos deu-me um ataque de nostalgia e desatei a ouvir músicas da infância. Foi de tal maneira que o meu médico me aconselhou a parar, porque tinha os níveis de Dartacão muito elevados no sangue. Disse que se continuasse assim ainda podia ter um Acidente Vascular Nostálgico.
Mas não sou só eu que sofro disto. Há uma onda nostálgica que varre a sociedade. Desde as pessoas da minha geração, que enfrentam sérios problemas de Dartacão e Abelha Maia, até aos mais velhos, que anseiam muitos deles por se reunir nos Céus com Vasco Santana e, se houvesse possibilidade, fariam sem hesitar a colecção de livros do Salazar, ao estilo Anita: “Salazar vai a Fátima”, “Salazar no ballet”, “Salazar cai da cadeira”, etc. Isto já para não falar daqueles casos mais graves de pessoas que ainda vivem com uma perna no séc. XIX. E que sonham certamente com ideais românticos de uma vida mais pacata e com pessoas de monóculo. Dizem: “Se o Eça de Queiroz fosse vivo...” Se o Eça de Queiroz reencarnasse era provavelmente um velho caquéctico e passava o dia todo a ver “As tardes da Júlia” e “O preço certo em euros”. Caramba, de onde vem tanta nostalgia?
Talvez a explicação esteja na mais recente colectânea de músicas infantis do meu filho, adquirida em 2013, em que o Dartacão e pérolas da modernidade como a música do Buéréré de Ana Malhoa convivem lado a lado com musiquinhas antigas como “As pombinhas da Catrina” e “Rosinha do meio.” Já nem me lembrava que estas músicas antigas existiam se não fosse a felicidade de ter de as gramar outra vez.
A minha teoria é que estes clássicos de antanho passam discretamente de geração em geração e plantam uma sementinha de nostalgia em todos nós. Por todo esse país há criancinhas a viverem em prédios rodeados de alcatrão, que vibram ao som de “Ó rosinha, ó rosinha do meio, vem comigo malhar o centeio” ou “As pombinhas da Catrina andarão de mão em mão (...) minha mãe mandou-me à fonte e eu parti a cantarinha.” É incrível que neste mundo em que o meu computador fica obsoleto em 3 anos, a Rosinha continue a malhar o centeio e ainda se partam cantarinhas. Mas, por outro lado, há qualquer coisa de tranquilizador nisso. E de esquizofrénico. Parece que nunca fomos tão avançados e tão antiquados ao mesmo tempo.
E desconfio que a tendência é para piorar. À medida que o Manuel de Oliveira se transforma na regra e não na excepção, e que quem não chega a bisavó é totó, a ponte afectiva entre séculos aumenta. O que significa que temos o caldo perfeito para uma mistura nostálgica explosiva. Porque às modinhas antigas inoculadas numa fase pré-consciente do ser humano junta-se esse irresistível e perigoso fenómeno denominado de “amor de bisavó”; autêntico cimento afectivo, que se manifesta geralmente sob a forma de rebuçados do Dr. Bayard e de todo o tipo de apaparicanços anacrónicos que fazem parecer as bombocas uma invenção da modernidade.
Vamos ser lentamente emparedados entre rosinhas do meio e rebuçados do Dr. Bayard e nem nos apercebemos. E a verdade, meus amigos, é que é um doce emparedamento. Não há nada que possamos fazer. E se a bisavó falhar, levamos sempre com a Machadinha. Ou com a Padeirinha. Isso é que nunca falha. Há-de haver sempre uma modinha para espetar às crianças. Quando dermos por ela já temos sete ou oito Padeirinhas no bucho e o uso de monóculo começa a parecer perfeitamente aceitável.
O mais provável é que na primeira colónia portuguesa que se estabeleça no inóspito solo lunar as crianças ainda cantem: “Ó rosinha, ó rosinha do meio. Vem comigo malhar o centeio.” Não tenho nada contra, mas alguém diga à Rosinha que já pode parar de malhar. Arranjem uma debulhadora à rapariga.
(http://lifestyle.publico.pt/pontalingua/337522_nostalgia-em-tempos-de-tablet)