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Gonçalves

Do escritório para o convento

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Há cada vez menos pessoas a trabalhar no escritório da empresa e cada vez mais a trabalhar em casa. Pelo menos é o que rezam os dados. Há previsões que apontam para que nos EUA, por exemplo, os trabalhadores independentes venham a representar cerca de 40% da força de trabalho em 2020. E eu, como não quero chatices com as previsões, já sou daqueles que trabalham a partir de casa. Coisa que aprecio, mas que admito que tenha as suas desvantagens, como a falta de contacto humano ao fim de algum tempo.

 

Percebo que estou há muito tempo sem ver pessoas quando me ligam às seis da tarde e me perguntam: “Peço desculpa, estava a dormir?” Porque a voz me sai de tal maneira rouca e cavernosa que as pessoas nem hesitam na pergunta. Geralmente respondo com um simples “Não, não estava.” Mas a resposta certa seria: “Peço desculpa, mas é que estou há tantas horas sem contacto humano que tive de usar um grampo para descolar os lábios! Mais cerrada que a minha boca só a gruta do Ali Babá!”

 

Mas sinto que estou realmente a raiar o anti-social quando dou por mim a falar sozinho na rua com alguma frequência. Sou um adepto do solilóquio, ajuda-me a organizar os pensamentos. Aliás, não percebo tanto preconceito contra quem fala sozinho. Parece que é mais bem aceite cuspir para o chão em público do que falar sozinho. Pelo menos vejo mais gente a cuspir para o chão do que a falar sozinha na rua. E verifico que quando alguém manda uma daquelas cuspidelas devidamente sonorizadas de meter medo ao susto, ninguém liga nenhuma, mas se formos apanhados a falar sozinhos na rua lançam-nos um olhar esbugalhado, como quem diz: “Atenção: Louco às duas horas!” No entanto, quando os solilóquios de rua ultrapassam uma determinada frequência, sei que é hora de combinar um almoço ou de ter qualquer tipo de contacto com seres humanos, que não apenas a minha família.

 

É incrível como se podem rapidamente perder aptidões sociais. Quando damos por nós estamos transformados em eremitas urbanos. Não há muito tempo estava a partilhar um espaço de trabalho com amigos e passados uns meses de bem-bom caseiro estou cheio de ferrugem social. Partilhar um apartamento com amigos é talvez a melhor forma de trabalhar. O único problema é que dada a instabilidade do emprego hoje em dia, o corrupio de amigos que dão lugar a amigos, conhecidos ou perfeitos estranhos é tal, que num momento podemos estar rodeados de amigos e no outro de traficantes de droga ou de web designers. Nunca se sabe. Ou então, dada a volatilidade da vida de trabalhador independente, esfuma-se toda a gente e lá se vai o arranjinho. Há vários químicos ilustres que consideram a vida de trabalhador independente mais volátil que o éter.

 

Para colmatar a ausência de pessoas também posso ir trabalhar para o café ou para a biblioteca. Mas o índice de interacção na biblioteca, por exemplo, é muito fraco. É pior do que ter um animal de estimação, porque não dá sequer para fazer festinhas ou atirar um osso às pessoas. “Larga lá o computador, anda! Apanha o osso! Grrrr!” As pessoas da biblioteca nem sequer ronronam. É uma miséria! Não fazem grande companhia.

 

Desde há uns tempos também existe a modalidade de coworking. Mas a palavra faz lembrar vacas. Por isso, quando me perguntam se quero aderir ao coworking fico sempre na dúvida. Contudo, o coworking talvez seja o local ideal para reunir os vários eremitas urbanos. Porque permite que cada um professe o seu mister com algum recato, ao mesmo tempo que possibilita uma certa partilha comunitária, às refeições e não só. No fundo, é como um convento, em que cada monge tem a sua cela, mas também a sua vivência em comunidade. Só que os novos monges dedicam-se ao web design e a outras cenas maradas, em vez de se dedicarem à cena do Jesus e do Deus.

 

Se calhar também se podia fazer bolos e entoar cânticos nos coworks. Faziam-se os chamados doces coworkuais. Os pastéis do cowork ou as barrigas-de-coworker. Uma das vantagens destes novos conventos é que em princípio as pessoas não vão para lá obrigadas. Acho que ninguém é posto num cowork à força. “Portaste-te mal, desgraçaste a família, vais para o cowork de Elvas!” “Não, papá! Tudo menos o cowork de Elvas! Não tem sequer wireless!” “Pois não! Nem máquina do café! Por isso é que vais para lá!”

 

Se esta tendência crescente do coworking continuar, como parece estar a acontecer por todo o mundo, tudo se encaminha para um estilo de vida mais medieval. Seremos uma grande comunidade de monges a recibo verde. E à semelhança dos franciscanos, dominicanos ou beneditinos, serão fundadas várias ordens, a ordem dos arquitectianos (não confundir com a Ordem dos Arquitectos, que não tem carácter religioso), a ordem dos webdesignerianos ou mesmo a dos traficantinos, consoante as especializações de cada espaço. Haverá certamente lugar para uma ordem de pés descalços, tendo em conta as provações a que estão sujeitas as gentes a recibo verde. Ou então não haverá ordens nenhumas e será tudo ao molho e fé em Deus, o que para muita gente será excelente, desde que se possa cantar e comer barrigas-de-coworker.

 

Pode ser que entremos numa nova era tecnológico-medieval. Eu ainda não decidi se entro para o convento, mas enquanto penso no assunto vou ver se convenço as pessoas aqui da biblioteca pelo menos a rebolar no chão. “Vá lá, dá lá uma reboladela. Isso! Vês como rebolas bem? Custa alguma coisa? Agora já podes voltar para o teu jogo de computador.”

(http://lifestyle.publico.pt/vidaemgrandeestilo/342733_do-escritorio-para-o-convento)

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