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Gonçalves

As crianças são como cobras

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Olho para a fotografia do meu filho com dois anos e já não reconheço aquela pessoa. E como é possível se só passaram dois anos? Sei que vivi aquilo. Que foi assim. Que ele era assim. Mas por mais que me esforce por reconstituir a figura completa dele – viva e tridimensional –, já não consigo. Agora ele já é outro. Já é outra pessoa.

 

Se houvesse uma espécie de Polícia da Parentalidade estava tramado. Mandavam-me parar na rua e diziam-me:

- Tenho aqui uma foto do seu filho com 2 anos, para verificar se é mesmo o pai. Acha que consegue identificá-lo?

- Penso que sim. Posso ver a foto?

- Não, não pode. Terá de descrever-mo. Dê-me alguns pormenores que sejam relevantes.

- Tinha cabelo encaracolado.

- Certo. E o formato da cara, como era?

- Não me lembro bem. Arredondado?

- Bem, isso são quase todos. E como falava, recorda-se?

- Não. Só me lembro de algumas palavras. Ou nem isso. Já confundo tudo.

- Pois. E a voz, como era?

- Não me lembro.

- Mas o senhor não é pai dele?

- Sou, mas…

- Acompanhe-me à esquadra, se faz favor.

 

O meu filho já foi recém-nascido, já foi bebé de poucos meses, de alguns meses, de um ano, já foi criança pequenina e agora já é criança. Identifico pelo menos seis ou sete pessoas em quatro anos. Ouço dizer: “Eles crescem tão depressa.” Depressa é eufemismo. Nos primeiros anos as crianças são uma espécie de cobras em câmara rápida. Mudam de pele a cada dez minutos. Muitas vezes dou por mim de manhã a jogar o jogo do “Descubra as diferenças”, para tentar perceber o que mudou literalmente da noite para o dia. “Está diferente. Parece-me que a cara alongou um pouco. Ou será do bigode? Acho que ontem à noite não tinha bigode.”

 

É como se as várias etapas de crescimento fossem estratos geológicos. E as camadas sobrepõem-se a tal velocidade que é quase impossível lembrar-me do que ficou para trás. Como antigas civilizações que se soterram umas às outras. Civilizações perdidas. O meu filho bebé é como se fosse algo do tempo dos fenícios. Devia haver um pedo-arqueólogo, para nos ajudar a desenterrar memórias antigas.

 

“Como pode ver, este artefacto que produz uma música irritante e repetitiva é típico dos 6 meses de idade, de quando eles se aprendem a sentar.” “Sim, sim, lembro-me bem dessa música irritante.” “Então já se lembra do seu filho nessa idade!” “Não. Mas lembro-me perfeitamente da música irritante. Disso não me esqueço.”

 

Parece que o tempo passa mais depressa ao pé de uma criança. Elas são autênticos catalisadores temporais. Aposto que há pessoas que evitam conviver com crianças para não terem consciência que estão a envelhecer rapidamente. Proponho inclusive “a tortura da criança”, para criminosos que sejam particularmente sensíveis à passagem do tempo e ao envelhecimento. Basta expô-los ao convívio diário com uma criança para os conseguir quebrar num interrogatório. Um detective para o criminoso: “Ou falas ou mando entrar a criança!” “Não! A criança outra vez, não!” “E olha que já cresceu desde ontem! Já tem bigode!” “Não quero ver! Eu falo! Eu falo!”

 

Nesta fase dos 4 anos, em que as frases e as palavras começam a ficar claras e sem o típico arrastado infantil, sem sopinhas de massa na voz, fico muito contente que o meu filho ainda diga “entorneira” em vez de “torneira”, “águas amarelas” em vez de “aguarelas” ou “massandes” em vez de “sandes”. Quer dizer que ainda lá está qualquer coisa de uma pele anterior. Qualquer coisa que eu reconheço. Qualquer coisa a que me agarrar. Penso: “Houston, ainda temos contacto. Ele ainda cá está. Ainda não se transformou completamente noutra pessoa.”

 

Eu sei que a criança tem de ser autónoma e ir à sua vida. Mas deixem-me gozá-la um momento ou dois; como um visitante de presidiário, que sorve desesperadamente o que pode, antes que lhe levem a pessoa amada. “Ele agora tem de ir!” “Está certo. Porta-te bem! E vê lá o que comes! Não te enchas de Bollycaos, ouviste? Come antes uma massandes.”

(http://lifestyle.publico.pt/pontalingua/339338_as-criancas-sao-como-cobras)

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