Aprender um instrumento
Ouço dizer que para as crianças é muito importante aprenderem um instrumento.
E é verdade. Eu, por exemplo, sei tocar piano desde os 7 anos. E tem sido muito importante ao longo da minha vida, porque tenho a certeza que sem isso não seria tão rápido a escrever no computador. Todas aquelas escalas e arpejos deram-me uma destreza de mãos de fazer inveja a um polvo dactilógrafo.
Nunca mais toquei na vida, mas para teclar reconheço que dá um jeitaço. Às vezes estou a teclar freneticamente no computador e sinto-me o Maestro Vitorino de Almeida ao piano. Gosto especialmente de carregar com força no “Space”. É aquele pequeno intervalo de libertação e loucura. E depois vem o “Enter”, que é a conclusão. É como que a última nota de uma peça. Carrego no “Enter” e parece que ouço palmas. Ou então é a minha mulher a chamar-me para a mesa, para dar de comer a crianças.
Mas há pessoas que foram ainda mais longe do que eu. E desenvolveram vários talentos. Porque, além da destreza de mãos, sabem mesmo tocar piano. E isso permite-lhes naturalmente sonhar com outros voos e almejar tocar em grandes salas, como o Atrium Saldanha, em Lisboa. Sempre que vou àquele centro comercial vejo como as pessoas se emocionam com o pianista que anima o espaço, enquanto rebentam uma sandes de atum ou estraçalham uma hamburga. E penso: “Ora aí está o biscate de sonho.”
Sim, porque nos nossos dias, por mais que a arte nos toque, temos de ter sempre o radar-biscate ligado. Ou não fôssemos a geração biscate. Onde quer que o biscate espreite, nós estamos lá. Aliás, eu acho que devia haver o alerta-biscate. Sempre que houvesse um biscate era projectado um sinal nos céus, como o Batsinal do Batman, para nos avisar. Também proponho, embora isto não seja tão realista, que ao centro de emprego se acrescente o centro de biscates. “Quais são as suas habilitações?” “Sou licenciado em arquitectura, em sociologia e toco corneta.” “Tenho o biscate ideal para si.” Um conselho de amigo: Se à corneta puder acrescentar a decoração de bolos, ainda melhor. Temo que o texto não esteja moralista o suficiente, por isso vou dar-lhe gás. A verdade é que o tempo dos monotalentos já lá vai. Hoje em dia há que ter múltiplos talentos. Porque pode ser que algum acerte. O futuro é a LeonardoDaVincização da sociedade. Primeiro foram os champôs 2 em 1, depois o Kinder Surpresa 3 em 1 e hoje em dia são as pessoas não-sei-quantos em 1. O que se quer são homens e mulheres do renascimento preparados para o biscate.
Por isso é que nunca foi tão premente aprender um instrumento. Porque é um dos maiores desenvolvedores de aptidões e talentos. E de pequenino se torce o pifarinho. Eu, por mais que a minha querida professora de piano tentasse, não consegui extrair todas as potencialidades do instrumento. Mas no seu caso ou, se for pai, no caso do seu filho, quem sabe? Eu acredito que quem se esforçar o suficiente e tiver o mínimo de talento, pode um dia vir a tocar no Auditório Gulbenkian ou no Atrium Saldanha.
(http://lifestyle.publico.pt/pontalingua/335434_aprender-um-instrumento)