Adulto pai
Ser adulto é a melhor coisa que há. Porque podemos fazer o que nos apetece. Sim, já sei, dentro de certos limites blá blá blá. A verdade, adolescentada, é que fazer 18 anos é mesmo das melhores coisas que há, digam o que disserem os vossos pais.
Ser adulto e pai ao mesmo tempo ainda é mais interessante. Porque se num minuto dizemos à criança “Não comes mais chocolates!”, com ar reprovador convicto, no outro estamos a atirar-nos alarvemente à caixa dos bombons às escondidas. Isto enquanto convocamos o perdigueiro que existe dentro de nós, para não sermos catados pela criancinha. Eu sinto as minhas orelhas a ficarem pontiagudas cada vez que vou às guloseimas.
A lógica é sempre a mesma “podemos fazer o que nos apetece, desde que os filhos não vejam.” Devia ser esse o lema oficial dos pais.
“O que é que fizeste, Gonçalo, tu mataste uma pessoa?!” “Sim, mas os nossos filhos não viram.” “Ah, ok.”
A fórmula é mais ou menos esta:
Direitos de adulto pai = Mesmos direitos de adulto sem filhos - Os filhos verem
Acontece que no outro dia o meu filho apanhou-me em flagrante a comer batatas fritas. Ainda tentei esconder o pacote, mas foi nesse preciso momento que ele me apanhou. O que ainda é mais vergonhoso. A mãozinha sorrateira a esconder o pacote atrás da almofada do sofá e o sacana: “Não, não, papá, não sejas mauzinho. Essas batatas são para mim.” Pânico, horror, paralisia completa do corpo e do cérebro.
Porque a partir do momento em que um pai é apanhado é a tristeza completa. Não só passa pela vergonha absoluta de um mau exemplo, de alguém que não tem autoridade moral nem para defender os direitos dos cidadãos da Trofa, como ainda por cima, neste caso, tem de partilhar as batatas.
E acho que isso ainda foi o que me custou mais. Eu não queria partilhar aquelas batatas com ninguém. Estavam a saber-me pela vida. Era o meu momento de descanso. O meu momento de prazer. Aquelas batatas eram minhas. Minhas! Não queria partilhá-las com puto ranhoso nenhum. Sangue do meu sangue, o tanas. Ele que vá trabalhar. Cada vez sou mais a favor do trabalho infantil. Deve ter sido assim que surgiu a célebre frase: “vai trabalhar, malandro!”, depois de um pacote de batatas fritas partilhado a contragosto. Um filho implica demasiado investimento. Eu sou da opinião que a partir dos 3 anos eles deviam começar a trabalhar, para atingir o break-even por volta dos seis e começarem a pagar os estudos. “Queres ir para a escola, vai trabalhar! Larga essa chucha de vez e faz alguma coisa na vida!” “Papá, posso ver o Pocoyo?” “Não, vais trabalhar na terra. No campo, que é o que está a dar! Quero essas mãos calejadas, gretadas, ensanguentadas de tanto apanhar alfarroba!” “Papá, onde é que se põe o canal do Pocoyo?” “É aqui.”
De qualquer modo, para evitar sermos apanhados em flagrante delito, o ideal seria ter uma espécie de alarme detector de crianças. Como aquela geringonça do Aliens que sinalizava a aproximação dos monstros e fazia um sonoro bip, cada vez mais intenso e audível, à medida que eles se aproximavam: “bip o teu filho está a 20 m, bip bip está a 10 m, bip bip bip bip está a 5 m! Despacha-te, come o chocolate!” Na impossibilidade de ter este objecto, só há uma solução, é ter consciência que, apesar de sabermos que por dentro somos uns vermes abjectos capazes das maiores indignidades, por fora a carapaça tem de estar impecável, com o verniz a cintilar. De preferência, sem chocolate nos beiços.
(http://lifestyle.publico.pt/vidaemgrandeestilo/336932_adulto-pai)