A dureza das Pistas Brandas
Voltei aos parques aquáticos, por causa dos meus filhos, quebrando um jejum com 30 anos. E uma das estrelas do parque a que fomos é um grande escorrega acolchoado, dividido em várias pistas, em tudo igual àquele em que me diverti muitas vezes na adolescência, no extinto Ondaparque da Costa da Caparica.
Por isso, quando voltei a pisar este escorrega, foi com alegria que tomei o meu lugar no alto do tapete, pronto para descer toda aquela fofura. Mas, assim que o vigilante deu sinal de partida, comecei a assustar-me. Já não me lembrava que aquilo era tão escorregadio, senti-me como um gato desesperado a patinar em sabonete. Queria controlar o corpo mas ele não obedecia. A certa altura, senti que podia virar-me de cabeça para baixo e entrei em pânico. A descida durava poucos segundos mas parecia uma eternidade. Lá consegui não me virar por completo e desci estupidamente inclinado até cair na piscina.
Saí da água assarapantado, sem perceber bem o que tinha acontecido. Foi uma descida estranha, porque uma parte de mim até tinha curtido a viagem, enquanto outra parte passara o tempo todo a rogar pragas àquele tapete filho da mãe por querer dispor do meu corpo daquela maneira.
Estava nestas cogitações quando os meus filhos disseram: “Vamos descer outra vez!” E lá fui também, por arrasto. Pelo menos desta vez já conhecia as manhas do escorrega e, quando me vi de novo no alto do tapete, convoquei todos os músculos que conhecia, retesando-os ao máximo, para ir direito que nem homem-bala. Pensei: “Não me vais entortar desta vez, sacana!” Mas entortou. O sacana. E voltou a entortar-me mais uma ou duas vezes nesse dia, porque os meus filhos não se cansavam daquela esponja pérfida e eu não arranjava maneira de contrariar aquelas guinadas do demo.
Senti-me piurso, frustrado, porque a única coisa que ganhei em oferecer tanta resistência ao escorrega foi um torcicolo. Ao mesmo tempo, não percebia porque reagia assim na pista, tão control freak. Quase toda a gente deslizava naquele tapete de forma descontraída e esparvoada – desde a criancinha caga-tacos que caía desamparada e feliz na água com um chapão nas trombas até à avozinha de família que descia a fazer breakdance –, mas a mim deu-me para ser pudico de movimentos. Tenho ideia de que na adolescência também fazia parte do clube dos esparvoados. O que aconteceu entretanto? Não sei se agora tinha mais medo do ridículo, horror ao descontrolo ou outra coisa qualquer, mas sei que parecia um lorde inglês a deslizar, com a postura de quem nunca põe um cotovelo em cima da mesa e imagina uma preceptora suíça na cabeça a dizer: “Ponha-se direito no tapete!”, “Não se cai de rabo na água!”
Entretanto, reparei que chamavam àquele escorrega “Pistas Brandas”. E isso irritou-me ainda mais. Brandas o tanas! Por esta altura já tinha enfrentado escorregas com nomes como “A Grande Onda”, “Queda à Pique”* ou “Kamikaze” e nenhum me tinha desconcertado desta maneira. N’“A Grande Onda”, por exemplo, senti uns calafrios que me fizeram dar graças no final por ainda estar vivo, mas as “Pistas Brandas” desafiavam-me a um nível mais profundo, existencial.
Daí que, quando os meus filhos suplicaram, mesmo antes de fechar o parque, para voltarmos novamente às ditas Brandas, eu estremeci por dentro. Engoli em seco e lá fomos. Assim que chegámos, o vigilante apontou-nos os nossos postos, qual carniceiro do divertimento. Encarei aquele tapete pela última vez, cansado, como um touro que já levou várias farpas no lombo. Recebemos luz verde para deslizar e o monstro esponjoso fez a sua parte, tentando por todos os expedientes virar-me ao contrário, até que atingi aquele ponto fatídico em que o corpo está prestes a rodar de cabeça para baixo. Dei por mim sem reacção, virei-me mesmo do avesso e comecei a rodopiar sem parar. E senti-me bem. Senti que só me apetecia continuar ali às voltas naquele colchão fofo e molhado, como chávena embalada num carrossel.
* Nomes originalmente em inglês que traduzi livremente para português à revelia de várias entidades, incluindo vários gnomos.