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Gonçalves

Rua do Pai Calvo

Série "Ruas de Lisboa"

rua-do-pai-calvo-placa_Foto José Carlos Baptista.     Foto: José Carlos Baptista

Uma vez que correspondo ao retrato-robô descrito no nome desta rua, por estar na posse de calvície e de um par de filhos, senti-me quase na obrigação de ir ver o que se passava neste local. Foi assim que descobri que a Rua do Pai Calvo comunica, a norte, com a Rua da Mãe Coxa e, a poente, com o Beco do Avô Vesgo. Estou a brincar, estas duas últimas ruas não existem. Mas a Rua do Pai Calvo existe e fica em Caselas, na freguesia de Belém.

É uma rua pequena e pacata. Aliás, tudo em Caselas é pacato. É um bairro estranho, porque é como se estivéssemos a visitar a Aldeia de José Franco em ponto grande. Para quem nunca foi à Aldeia de José Franco, no concelho de Mafra, basta imaginar que Caselas dá a impressão de que podia ter sido feita por um homem só, no seu tempo livre, como quem faz presépios. Já no tempo do Estado Novo seria um sítio diferente, mas agora é ainda mais, no meio da grande urbe. É um bairro isolado, de vivendas bonitinhas e prédios baixos. Tem uma igreja no centro, onde o sino dá as horas de quarto em quarto de hora. As ruas parecem limpas, os autocarros passam, os passarinhos cantam, tem um pequeno campo de jogos numa zona verde e até tem uma escola primária ao fundo, com crianças a sério, que fazem barulho a sério, o que confere harmonia ao bairro. Uma harmonia que arrepia, porque há qualquer coisa de irreal em toda esta perfeição. Fico com a sensação de que estou num cenário e de que as pessoas que passam por mim são figurantes.

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Na Rua do Pai Calvo, por exemplo, avisto um homem com ar de quem tem tempo: o andar é pausado, faz uma pequena paragem em frente ao café da rua, acende um cigarro, passa por mim no seu ritmo lento, cadenciado, e continua a dar a volta ao quarteirão, sem destino aparente. É claramente um figurante! Também é verdade que aparenta ter uns 70 e tal anos e isso poderia levar-nos a pensar que se trata de um reformado no seu passeio higiénico tabágico matinal. Mas, naquele sítio, não creio. Só pode fazer parte do cenário.

A Rua do Pai Calvo só tem casas de um lado. Poucas casas. São todas elas vivendas mais ou menos parecidas. A única coisa que distingue notoriamente uma delas é um grande símbolo do Sporting pintado a preceito na fachada lateral. É algo de tão inusitado neste contexto quase asséptico, que à primeira vista parece um acto de vandalismo feito com minúcia.

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Ali perto há uma rampa que termina num beco sem saída, que se chama Caminho da Raposa. Assim, sem mais. Não é rua, não é beco, a placa só diz mesmo Caminho da Raposa. Não sei se a raposa ia gostar deste caminho, porque é completamente acimentado. Mas, enfim, podia ser uma raposa moderna. Mais à frente há um pequeno trilho de terra, pelo qual enveredo, na zona relvada por trás dos quintais.

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O verde adensa-se e, de repente, vejo-me rodeado de vegetação, pinheiros, passarada, borboletas a esvoaçar e besouros a besourar. Sinto-me no campo. O sino da igreja dá uma badalada. É o bucólico perfeito.

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A atmosfera demasiado tranquila de Caselas dá-me calafrios. Despeço-me do Pai Calvo, das vivendas fofas, dos passarinhos a chilrear e de todo um bairro que parece demasiado bom para ser verdade. Não sem antes pensar que, se tivesse de viver num cenário, este bairro era perfeito.

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