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Gonçalves

O fruto menos apetecido

Hendrick Goltzius

Dizem que a maçã é o fruto proibido e que o fruto proibido é o mais apetecido. Mas a quem é que apetece assim tanto uma maçã?

Em minha casa, onde somos quatro (uma amostra espectacular, bem sei) é sempre o último fruto a ser comido. Primeiro vão as bananas, que são docinhas, moles e descascam-se num instante, granjeando forte sucesso junto do público infantil. Depois marcham frutos mais sazonais, apetitosos e fáceis de comer, como pêssegos, morangos, uvas, cerejas, alperces. Seguindo-se frutos exóticos ou mais raros, que é preciso descascar, como manga, papaia, melão, ananás. Depois vão frutas mais banais, mas ainda assim apetecíveis, como tangerinas, laranjas, kiwis, pêras. E, por fim, as maçãs.

Estou a comparar fruta ao natural, como é óbvio, porque maçã reineta assada, com toneladas de açúcar em cima, não vale, é doping. E é claro que a ordem por que comemos as frutas tem um lado caótico e aleatório, mas, se organizássemos as frutas por equipas, a hierarquia seria mais ou menos esta, ficando as maçãs quase sempre para o fim da fila.

Aliás, ainda as maçãs povoam a fruteira e já estamos a comprar novas frutas, porque a maçã, até pela sua longevidade de tartaruga, vai ficando. Às tantas sinto que as maçãs se tornam quase ornamentais, porque, sem elas, a fruteira fica despida. Assim, com elas lá, sempre se mantém um colorido constante, como flores falsas numa jarra. O problema é que isso pode sedimentar a ideia de que elas não são para comer. Quando me decido, por fim, a comer uma delas é como se estivesse a retirar uma pequena peça de mobília da cozinha ou um bibelô da prateleira.

A certa altura, já as reconheço individualmente: há a que tem um pequeno buraco preto, a outra que tem duas manchinhas castanhas que sei que terei de tirar com a faca se a quiser comer, ou aquela que é mais vermelha que o normal e por isso mais apetecível, mas não o suficiente para me dar ao trabalho de a comer. Ao fim de várias semanas de convívio é tal a familiaridade que quase nos tratamos por tu. Quando olho para elas, sempre as mesmas de manhã quando entro na cozinha, é como se trocássemos um tácito “Cá estamos.”

Nunca fomos tão próximos, eu e as maçãs. A nossa relação já foi bem pior. Na infância tinha-lhes aversão – recordo-me sobretudo de pêros massudos, a enrolarem-se-me na boca. Eu perguntava “O que é um pêro?” E respondiam-me “É uma maçã.” E, não sei porquê, esta ideia nunca me entrou muito bem na cabeça.

E também achava a cena do Pecado Original da Bíblia uma parvoíce, porque Adão e Eva, num sítio chamado Jardim das Delícias, com fruta do bom e do melhor, perdiam a cabeça por uma maçã. E eu pensava “Uma maçã? Que mau gosto.” Para mim, era o equivalente a ir à melhor pastelaria do mundo, com bolos maravilhosos e salgados óptimos, e escolher o folhado de espinafres.

Como é bom de ver, ainda hoje não adoro maçã. E só como a variedade Fuji, porque acho mais doce e rijinha, o resto não funciona para mim. Reconheço que, quando tudo falha, e as restantes frutas desaparecem ou apodrecem, deixando-nos entregues à bicharada, lá está a maçã para salvar o dia, como a última moicana da fruteira. Por mais rejeições que sofra, aguenta-se o mais que pode e não nos abandona, como se fosse a mais adulta e responsável das frutas.

Entretanto, até descobri uma maneira de gostar mais delas, não só pelas suas qualidades adultas e decorativas, mas também pelas alimentícias: cortando-as em pedaços. Inovador, certo? (ler com ironia) A ideia de comer uma maçã inteira continua a desencorajar-me, mas percebi que se a cortar em quatro ou cinco pedaços fica muito mais apetitosa. O que é estranho, porque é praticamente a mesma quantidade de maçã. Há qualquer coisa de mágico nos pedaços. Se calhar porque assim não se parece com maçã.

Mentira, maçã, estou a brincar. Não te ofendas. Sinto que eu e tu temos feito progressos ao longo da minha vida. Se eu chegar aos 120, e ainda tiver dentes, quem sabe se num dia muito bom, e com pouca fruta, não serás uma segunda escolha, logo atrás da tangerina?

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