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Gonçalves

A praia como instrumento de tortura

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Cada vez me custa mais entrar no mar quando vou à praia. Sei que nos Açores e na Madeira o mar é mais quentinho, mas ir à água em Portugal Continental é um martírio. O que em miúdo era fácil converteu-se num processo de tortura, porque o mar da maioria das nossas praias continentais é tão gélido que os meus pés ficam com cólicas só de contactar com a água rasa. Os ossos contorcem-se e retorcem-se de formas que nunca imaginei possíveis. É de gabar aquelas pessoas que dizem “Vou só molhar os pés” ou “Vou só molhar os tornozelos”, uma vez que isso, só por si, já é um acto heróico. Nem o Algarve escapa ao panorama gelado da nossa costa continental. No último Verão estive em Lagos – que pode não ser o Sotavento, mas também não é Sagres – e fiquei com medo de apanhar osteoporose súbita só de pôr os presuntos na água.

Para prevenir este tipo de enfermidades, o meu critério actual para entrar na água é ouvir os ossos. Há quem lance búzios para tomar decisões, eu escuto o meu esqueleto. Há gurus que dizem: “procura a resposta dentro de ti.” E é o que eu faço, até à medula. Mal ponho o pé na água é como se ouvisse o Daniel Oliveira a perguntar-me “O que dizem os teus ossos?” E eles geralmente dizem-me: “Qual Daniel Oliveira, o que comenta política?” “Não. O outro.” “Ah, ok”, respondem os ossos. E acrescentam “Chiça, que gelo horrível! Desaparece daqui!” É isso que eles me dizem.

Muitas vezes, só me decido a tomar banho quando o sol bate com tanta força na minha moleirinha que já consigo acender cigarros com a careca. Transformo-me num isqueiro de automóvel, basta encostarem um cigarro à minha calva e já está. Se algum fumador me quiser instalar no carro é uma questão de negociarmos o preço.

Mesmo quando estou determinado a tomar banho, a entrada na água é um processo em câmara muito lenta e por várias etapas. Quando consigo transpor a difícil etapa dos pés, ou seja, quando eles estão anestesiados ao ponto de me poderem ser amputados sem eu dar por isso, lá inicio o processo de molhar lentamente as pernas, centímetro a centímetro, como quem paga uma promessa, até atingir o sítio fatídico, o Cabo das Tormentas de qualquer banho de mar para um indivíduo do sexo masculino: o baixo ventre – que é um eufemismo dos comentadores de futebol para aquilo que os médicos costumam designar de “testículos”, como na frase “parece que o jogador ficou estendido no relvado, agarrado ao baixo ventre”. É nesta região corporal que o choque térmico se faz sentir com maior intensidade. Sei que se ultrapassar este obstáculo ainda é preciso suplantar o frio nas costas, na barriga, nos ombros, em todo o lado, na prática, mas a utopia de dar um mergulho começa a tornar-se possível.

Tudo isto ganha contornos mais humilhantes quando, passado um bocado, vejo a minha tia a entrar na água sem pestanejar. É impressionante, parece um tanque anfíbio. Como se mar e terra fossem uma e a mesma coisa. Não faz sequer um compasso de espera quando chega à água. É um ultraje para todos os que, como eu, estão ali há horas para galgar 10 cm de mar. Os jovens machos que se atiram à maluca para dentro de água para impressionarem as jovens fêmeas não são nada ao pé da minha tia, porque ela entra na água de forma convencional, sentindo o frio da água em cada poro do corpo, e não vacila, enquanto eles fazem mortais e saltam em modo kamikaze, escapando a várias etapas da via-sacra glaciar. Eu gosto muito da minha tia, mas acho que ela já não tem nervos na pele e ainda não reparou. Ela podia estudar focas no árctico em fato de banho e mergulhar ao lado delas no pico do Inverno.

Teoricamente, isto de tomar um banho frio num dia tórrido pode parecer boa ideia, mas depressa descobrimos que não é. E descobrimos também, à beirinha da água, que nos encontramos de repente entre dois habitats inóspitos, o calor massacrante do areal e o mar congelador de ossos. Deve ser a forma que arranjámos de viajar dos trópicos aos pólos em pouco tempo. É nessa altura que me ocorrem perguntas como “O que é que eu estou aqui a fazer?” ou “Porque é que fiquei careca? Será culpa do meu avô materno?” E acendo-me um cigarro enquanto penso.

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