Funeral às pinguinhas
De vez em quando deparo-me com um fenómeno curioso. Há pessoas que já não vejo há séculos, desde os tempos em que tinha uma farta cabeleira, que me dizem: "Eh pá, tinhas tanto cabelo!" E fazem acompanhar estas palavras de um ar pesaroso, com a expressão do rosto franzida de dor alheia e misericórdia. E nesse momento quase sinto a mão delas a dar-me uma palmadinha no ombro, como quem me dá os pêsames. É como se estivesse a assistir ao meu próprio enterro em vida.
E a parte gira é que tenho de ser eu a consolá-las no meu funeral e a dizer-lhes algo como “Está tudo bem. Eu estou morto, mas estou bem!”
Depois há outras pessoas que ainda reagem pior à minha falta de cabelo e nem me conseguem olhar nos olhos, tal a pena que sentem de mim. Evitam-me. Para elas é como se eu já fosse outra pessoa e o meu antigo eu estivesse completamente morto e enterrado. Olham-me só de soslaio, assustadas, como se vissem um fantasma ou uma assombração. E se tento dirigir-lhes a palavra, ainda é pior. Fazem a mesma cara do puto do “Sexto sentido”, horrorizadas, como se dissessem: “I see dead people!”
No outro dia, até o médico – o próprio do médico que me fez o diagnóstico de alopecia galopante – se virou para mim com ar compungido e disse: “Perdeu muito cabelo!” Ao que eu naturalmente respondi: “Daaah!” Na realidade não foi isso que respondi. Mas era o que me apetecia. Quando ele disse “Perdeu muito cabelo” com aquele ar sentido de quem está prestes a desfazer-se num pranto, eu só pensava: “Estou tramado. Tu queres ver que também tenho de consolar este?” Não tarda tenho de andar com ramos de flores para distribuir a quem queira chorar a minha calvície no ombro.
Acho que é a primeira vez que tenho um vislumbre do que é ser um coitado da sociedade. A partir de agora terei solidariedade redobrada para com os obesos, os coxos, os anões, os sem-abrigo, os ministros da educação e todos os enjeitados desta vida, porque aparentemente sou um deles. Há quem me veja como uma espécie de pessoa portadora de deficiência.
No entanto, nem todos ficam pesarosos, porque também há os que me vêem como uma pessoa portadora de incompetência. Ficam zangados comigo. Quando me dizem “tinhas tanto cabelo!” é com um misto de espanto e desilusão. É como se dissessem “Como é que te deixaste chegar a esse estado?! Caramba, é preciso desleixo!” Como se eu fosse uma espécie de elemento da equipa que, pelo seu mau desempenho, prejudica a equipa toda. Não tanto uma ovelha negra, mas uma ovelha careca. E por mais que lhes tente dizer que podia ter sido pior, que podia ter ficado perneta ou alérgico a Chocapic, isso sim, uma tragédia, eles não vão na conversa. Continuam a olhar para mim com um ar reprovador, como quem diz: “Se tivesses comido mais verduras não estavas nesse estado deplorável!”
Em todo o caso, eu percebo a reacção das pessoas. É perfeitamente natural. Porque eu já fiz o meu luto, já tive muito tempo para isso, mas elas não. No entanto, confesso que começo a ficar um pouco farto destes funerais e demais reacções às pinguinhas. Porque, há quem sonhe em assistir ao seu funeral, mas eu já assisti tantas vezes que começo a ficar enjoado. Parafraseando o Almirante Pinheiro de Azevedo, no PREC: “Não gosto de assistir ao meu funeral, é uma coisa que me chateia.”
Se calhar devia organizar um velório. As pessoas encontravam-se todas e chorávamos o meu cabelo. Ou então ponho um anúncio no jornal a dizer: “Morreu o cabelo de Gonçalo Puga. O próprio e sua família participam o falecimento. Foi um cabelo generoso e sempre amigo do próximo, que descanse em paz. A cabeleira restante estará amanhã em câmara ardente na Igreja do Calvário.”
(http://lifestyle.publico.pt/vidaemgrandeestilo/341079_funeral-as-pinguinhas)