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Gonçalves

Funeral às pinguinhas

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De vez em quando deparo-me com um fenómeno curioso. Há pessoas que já não vejo há séculos, desde os tempos em que tinha uma farta cabeleira, que me dizem: "Eh pá, tinhas tanto cabelo!" E fazem acompanhar estas palavras de um ar pesaroso, com a expressão do rosto franzida de dor alheia e misericórdia. E nesse momento quase sinto a mão delas a dar-me uma palmadinha no ombro, como quem me dá os pêsames. É como se estivesse a assistir ao meu próprio enterro em vida.

 

E a parte gira é que tenho de ser eu a consolá-las no meu funeral e a dizer-lhes algo como “Está tudo bem. Eu estou morto, mas estou bem!”

 

Depois há outras pessoas que ainda reagem pior à minha falta de cabelo e nem me conseguem olhar nos olhos, tal a pena que sentem de mim. Evitam-me. Para elas é como se eu já fosse outra pessoa e o meu antigo eu estivesse completamente morto e enterrado. Olham-me só de soslaio, assustadas, como se vissem um fantasma ou uma assombração. E se tento dirigir-lhes a palavra, ainda é pior. Fazem a mesma cara do puto do “Sexto sentido”, horrorizadas, como se dissessem: “I see dead people!”

 

No outro dia, até o médico – o próprio do médico que me fez o diagnóstico de alopecia galopante – se virou para mim com ar compungido e disse: “Perdeu muito cabelo!” Ao que eu naturalmente respondi: “Daaah!” Na realidade não foi isso que respondi. Mas era o que me apetecia. Quando ele disse “Perdeu muito cabelo” com aquele ar sentido de quem está prestes a desfazer-se num pranto, eu só pensava: “Estou tramado. Tu queres ver que também tenho de consolar este?” Não tarda tenho de andar com ramos de flores para distribuir a quem queira chorar a minha calvície no ombro.

 

Acho que é a primeira vez que tenho um vislumbre do que é ser um coitado da sociedade. A partir de agora terei solidariedade redobrada para com os obesos, os coxos, os anões, os sem-abrigo, os ministros da educação e todos os enjeitados desta vida, porque aparentemente sou um deles. Há quem me veja como uma espécie de pessoa portadora de deficiência.

 

No entanto, nem todos ficam pesarosos, porque também há os que me vêem como uma pessoa portadora de incompetência. Ficam zangados comigo. Quando me dizem “tinhas tanto cabelo!” é com um misto de espanto e desilusão. É como se dissessem “Como é que te deixaste chegar a esse estado?! Caramba, é preciso desleixo!” Como se eu fosse uma espécie de elemento da equipa que, pelo seu mau desempenho, prejudica a equipa toda. Não tanto uma ovelha negra, mas uma ovelha careca. E por mais que lhes tente dizer que podia ter sido pior, que podia ter ficado perneta ou alérgico a Chocapic, isso sim, uma tragédia, eles não vão na conversa. Continuam a olhar para mim com um ar reprovador, como quem diz: “Se tivesses comido mais verduras não estavas nesse estado deplorável!”

 

Em todo o caso, eu percebo a reacção das pessoas. É perfeitamente natural. Porque eu já fiz o meu luto, já tive muito tempo para isso, mas elas não. No entanto, confesso que começo a ficar um pouco farto destes funerais e demais reacções às pinguinhas. Porque, há quem sonhe em assistir ao seu funeral, mas eu já assisti tantas vezes que começo a ficar enjoado. Parafraseando o Almirante Pinheiro de Azevedo, no PREC: “Não gosto de assistir ao meu funeral, é uma coisa que me chateia.”

 

Se calhar devia organizar um velório. As pessoas encontravam-se todas e chorávamos o meu cabelo. Ou então ponho um anúncio no jornal a dizer: “Morreu o cabelo de Gonçalo Puga. O próprio e sua família participam o falecimento. Foi um cabelo generoso e sempre amigo do próximo, que descanse em paz. A cabeleira restante estará amanhã em câmara ardente na Igreja do Calvário.”

(http://lifestyle.publico.pt/vidaemgrandeestilo/341079_funeral-as-pinguinhas)

O pecado da ira

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O pecado da ira não é daqueles que têm mais glamour, como a luxúria ou a gula, mas é dos que sinto que mais tenho de controlar no meu dia-a-dia. Especialmente desde que sou pai. Porque as crianças acrescentam uma camada extra de stress à vida. Uma camada bastante alta e fofa.

 

Tal como o taxista urbano perde a cabeça no trânsito, os pais perdem a cabeça no stress caseiro. Os índices de ruído e de caos à nossa volta são igualmente elevados. Bem como o sentimento de frustração e de irritação perante o constante “pára-arranca” das crianças, que não nasceram para cumprir tarefas a eito, ou o desgaste de ter de estar sempre alerta. Caos, frustração e desgaste constantes, tudo isso é comum a pais e taxistas urbanos. Acho que falta um estudo comparativo entre ambos, porque penso que se chegaria a interessantes conclusões. Para mim, a definição de vida infernal é um taxista cheio de filhos. Devia ser, aliás, uma das punições do Inferno: “Como castigo serás taxista e pai de uma vasta prole!” Porque há quem use o trabalho para descansar da rotina caseira. Mas não consta que haja muitos taxistas a dizer: «Preciso de espairecer das crianças, vou para o “pára-arranca” levar com buzinadelas.»

 

E o pior é que o idílio familiar é um fenómeno tão invulgar quanto uma aurora boreal. Uma raridade pela qual devemos dar graças e sacrificar vários porcos aos deuses. Porcos grandes. Porque a tendência natural é para a entropia. Bem sei que as crianças são o elo mais fraco de uma cadeia de stress quotidiano, mas têm um talento nato para despertar o Mr. Hyde que há em nós. Em particular, quando o cérebro já está liquefeito e homogeneizado pelo alegre e prolongado convívio com elas. É nessas alturas que me surge por vezes o dilema: “Mando ou não mando um berro a esta adorável criatura?”

 

E é uma decisão muito difícil. Porque é tão fácil berrar e tão difícil ultrapassar todas as adversidades que se me erguem pela frente. Fazendo o balanço das coisas, o berro tem claramente tudo a seu favor. Acho que, tal como existe o alarme anti-roubo ou anti-incêndio, também devia disparar em casa das pessoas uma música calma de flautas de Pã ou de baleias, quando se sentisse que o ambiente estava a ficar perigosamente acalorado. Os sensores detectavam elevados decibéis e níveis de berraria e accionavam a música. E as pessoas já sabiam “Olha, dispararam as baleias, vamos lá ter calma.”

 

Enquanto isso não existe, tem de se recorrer a outros expedientes. Uma das soluções clássicas é a alternância. Qualquer pai sabe que ao fim de algum tempo a cuidar de uma criança – sim, basta uma, uma unidade de criança – precisa de substituição como no desporto. Aliás, eu acho que em todos os lares familiares deviam existir um treinador e uma equipa técnica, que levantassem a placa de substituição quando achassem que o pai devia dar lugar à mãe ou vice-versa. E diz o comentador desportivo: “O pai já estava claramente em sub-rendimento. A criança estava a fazer gato-sapato dele e já se notava algum descontrolo, após dois berros e um dedo em riste com boca a espumar de raiva. Penso que a opção do treinador foi a mais correcta, refrescando o miolo do terreno com a entrada da mãe.” “Sim, claramente, Ribeiro Cristóvão, este pai entrou bem no jogo, mas após duas horas – os jogos de parentalidade duram mais tempo – já se notava o desgaste, que se foi acentuando com o passar dos minutos. Era inevitável a sua saída.” É daqueles poucos casos em que o jogador raramente protesta por ser substituído.

 

Mas nem sempre é possível a substituição. E, para esses casos, os pais deviam ter um conjunto de truques na manga para evitar chegar ao grito. Devia haver cursos pós-parto, para ensinar técnicas de relaxamento. Ainda hoje me arrependo de não ter aprendido a respiração das contracções de parto. Dava-me muito jeito agora. Há quem tente pensar em imagens bucólicas para se acalmar. Mas não é bem o meu estilo. Não é a visão de um campo de papoilas que me vai serenar, quando o meu filho desata aos berros como se lhe estivessem a arrancar os rins a frio. Às vezes digo ao meu filho: “Olha, eu estou cansado e posso ser muito mau.” Como quem avisa um colega de pelotão que está prestes a pisar uma mina. Acho que devia haver panfletos específicos para pais, como por exemplo “Como lidar com o taxista urbano que há dentro de si.”

 

Estou a ser injusto para os taxistas. Há muitos que conseguem manter um notável equilíbrio emocional no meio do caos citadino. Conheci um taxista lisboeta que era bastante zen. E conseguia-o sem recurso a músicas calmas. Até porque passar a vida a ouvir baleias ou o “Oceano Pacífico” da RFM é meio caminho andado para dar um tiro na cabeça. Mas, dizia eu, que o taxista parecia que tinha nascido com a própria da serenidade dentro dele. Um autêntico Buda. Não havia buzinadela que perturbasse a sua descontracção. E o caminho é esse. É sermos como ele. O nosso grande líder espiritual devia ser um taxista sereno. Devíamos beber os ensinamentos dele. Estarei na primeira fila de compradores no dia em que sair o livro “Taxismo Zen”.

(http://lifestyle.publico.pt/vidaemgrandeestilo/340768_o-pecado-da-ira)

Será possível comunicar com uma pessoa que mete "cocó" em todas as frases?

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O meu filho tem 4 anos e já consigo ter com ele um diálogo competente, mas a comunicação entre nós ainda padece de algumas limitações.

 

Por vezes, quando estou ao pé dele sinto-me quase o Robinson Crusoe com o Sexta-Feira. Dois seres que se encontram e que tentam estabelecer uma relação, falar a mesma língua, mas que têm muita coisa a separá-los. Desde logo percebo que vivemos em realidades diferentes quando ele se vira para mim e diz: “Papá, sabias que a avó é um carro? A avó é um Toyota.”

 

Claro que eu podia tentar encetar um diálogo com ele nesta base, dizendo: “Não, olha que eu acho que a avó é um Subaru. Um Subaru Impreza. E a tia é uma Nissan Vanette.” Mas soaria sempre a falso, porque a verdade é que não domino o universo das analogias entre familiares e carros japoneses. De qualquer maneira, ele demonstra alguma lucidez, porque pouco depois pergunta: “Papá, o que é um Toyota?” Pergunta pertinente. O que é afinal um Toyota? Talvez seja a fusão do Toy com uma marmota. Não sei. Acho que prefiro não saber.

 

O facto é que o meu filho permanece um mistério para mim. Quando sinto uma animosidade estranha da parte dele, tento sondar aquela criatura minorca de ar apalermado e penso: “Será que já está no Complexo de Édipo?” Se calhar já atravessou essa fase e não dei por nada. O ideal seria que a criança nos avisasse nos dias de Complexo de Édipo, um pouco como a mulher e o período: “Papá, hoje não fales comigo que estou com o Complexo de Édipo.” “Ok.” Assim eu já sabia. De qualquer maneira, estou a pensar clarificar as coisas com ele e um dia destes digo-lhe: “Vê se metes uma coisa na cabecinha, miúdo, a tua mãe é minha, percebes? Minha! Portanto, esquece lá isso e vê se passas já à fase anal ou lá o que é.” “A fase anal já foi, papá.” “Está bem. Então passa à fase abdominal. Ou outra qualquer! Não me chateies!”

 

Outras vezes, penso que se me relembrasse de como era com 4 anos talvez conseguisse fazer melhor a ponte com ele. Porque é a partir dessa idade que começo a ter algumas memórias de jeito. Ou seja, podia tentar a abordagem da empatia, de tentar colocar-me no lugar dele. Mas logo a seguir, num rebate de lucidez, penso: “Tenho mais que fazer!” O meu instinto parental diz-me para salvaguardar as devidas distâncias hierárquicas da criatura. Não quero cá confianças com uma pessoa que mete a palavra “cocó” em cada frase que diz. “Cocó” para ele é adjectivo, substantivo e sentido de vida: “És um cocó”, “vai para o cocó”, “tens de cocó o cocó.”

 

Mas seja, por esta vez abro uma excepção e vou experimentar fazer esse exercício regressivo. As únicas memórias que tenho a certeza que vivi com 4 anos são do jardim-de-infância. Porque havia uma sala diferente para cada ano e as recordações estão bem compartimentadas na minha cabeça. Lembro-me da minha educadora dos 4 anos, a Madalena, de quem gostava bastante e que contava sempre as mesmas histórias, com as quais eu vibrava sempre como se fosse a primeira vez. A história do “Pedro e o Lobo”, então, foi contada até à náusea. Acho que até eu na altura pensei: “Bem, esta história já foi contada um disparate de vezes”. Mas, mesmo assim, o entusiasmo não esmorecia. O que comprova a teoria de que as crianças são seres que precisam da repetição. Se uma criança visse, por exemplo, o filme do “Nemo” ininterruptamente de manhã à noite, chegava ao fim do dia e dizia: «Posso ver o filme do “Nemo”?»

 

Lembro-me também que ciclicamente os rapazes formavam uma roda no recreio do jardim-escola para discutir quem tinha o pai ou o tio mais forte. Geralmente ganhava aquele que dizia: “E o meu tio tem um pastor alemão e mata-vos a todos!” Ter um pastor alemão era aparentemente algo de muito ameaçador e muito valorizado naquela altura. Se a Guerra Fria fosse definida por miúdos de 4 anos, o poderio bélico não se media pelo número de ogivas nucleares, mas sim pelo número de pastores alemães per capita. E provavelmente depois de 1989 seria necessário proceder ao desmantelamento de pastores alemães. O que é certo é que se alguém no meio da roda disparasse “E o meu pai é o Gandhi!”, não impressionava ninguém.

 

Também tenho ideia que nessa idade era um molenga de primeira a comer. A minha boca parecia o tambor da máquina de lavar, de tal maneira a comida rebolava infinitamente de um lado para o outro. Acho que o quimo se formava directamente na minha boca, por incrível que pareça. No entanto, isso não me faz sentir mais empático com o meu filho quando o vejo a enrolar os brócolos de um lado para o outro. O mais certo é dizer-lhe carinhosamente: “Despacha lá isso!” Pelo que me pergunto se isto da empatia é produtivo. Por mais exercícios regressivos que faça nunca conseguirei ter acesso àquilo que sentia ou à forma como pensava com 4 anos. Para dizer a verdade, acho que só me lembro daquilo que sentia para aí a partir dos 14 anos. Ou seja, tenho de esperar pelo menos dez anos para poder comunicar decentemente com o meu filho. Sendo que nessa altura ele já não vai querer comunicar comigo.

 

Estamos destinados a viver em mundos separados, eu e ele. E o pior é que nem sequer coincidimos nos gostos. A coisa que ele mais adora é brincar com carrinhos e eu prefiro levar um tiro de um amigo – como diz a célebre carta do Monopólio – a ter de brincar aos carrinhos com ele. Às vezes penso que haverá sempre um fosso irremediável entre nós. Não há muito que se possa fazer. Quer dizer, eu até posso. Posso inculcar-lhe umas memórias falsas, para pelo menos branquear algumas falhas da minha parte. Há até dias em que penso “Hoje vou inculcar-lhe uma memória falsa!” E ganho logo outro ânimo para a vida. Por isso, daqui por 2 ou 3 anos vou começar a dizer-lhe: “Lembras-te de quando brincava contigo aos carrinhos? Aquilo é que era, hã! Grande pândega!” E depois, se ele fizer um ar descrente, atiro-lhe com um indignado “Não te lembras?! Tu com o Toyota e eu com o Subaru!”

(http://lifestyle.publico.pt/vidaemgrandeestilo/340480_sera-possivel-comunicar-com-uma-pessoa-que-mete-coco-em-todas-as-frases)

Privação de asneiras na parentalidade

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O pior dia da minha vida parental foi quando me disseram: “Vais ter de parar de dizer asneiras.”

 

Porque, desde que tenho filhos, ainda me apetece dizer mais asneiras. A quantidade de asneiras que me apetece dizer aumentou na mesma proporção de filhos que fui tendo. Tenho dois. Se tivesse um rancho deles possivelmente transformava-me numa peixeira do Bolhão.

 

E depois esclareceram-me: “Podes dizer asneiras. Só não podes dizer à frente dos teus filhos.” Pois se é precisamente à frente deles que me apetece dizer! Se me partem a televisão; se chego à sala e a vejo de tal maneira desarrumada, que era preferível ser assaltado por um bando de ladrões com Parkinson; se me testam a resistência a limites que só julgava possíveis no K2 dos Himalaias; querem que faça o quê?

 

Já sofro de privação de sono, de tempo e de vida própria à conta das criancinhas e nem uma porcaria de uma asneira decente posso dizer em troca? O que é que querem mais de mim? O que é que querem, estas criaturas do demo!? Sinto-me torturado, violentado, esmagado. Os palavrões são o meu último reduto de sanidade mental e até isso tenho de reprimir. Deve ter sido isso que transformou o Jack num estripador, o facto de ter de reprimir os palavrões em família. Senão teria sido simplesmente Jack o Estucador ou coisa que o valha, um vulgar e pacífico cidadão. Não tarda vou compor uma versão da música da Ágata: “Podem ficar-me com o tempo, o dinheiro, a possibilidade de vida própria, mas não me fiquem com as asneiras! E tudo o mais que desejem, mas não me fiquem com as asneiras!”

 

Há quem me aconselhe: “Usa asneiras mais leves ou substitutos de asneiras.” Mas nunca fui de dizer “ora abóbora”, por isso não é agora que vou começar. A verdade é que até uso algumas asneiras mais leves, mas é muito difícil suportar a dureza da vida só com “canecos” e “poças”.

 

E o pior é que nem sequer gosto de ouvir o meu filho dizer “poça”. No outro dia ele estava frustrado com o carrinho dele e disse “poça!” com tal veemência que eu fiquei chocado. Longe vão os tempos românticos em que sonhava ensinar-lhe asneira da grossa, antes que um badameco qualquer da escola me retirasse esse privilégio. Mas constato que com 4 anos é muito novo, mesmo para palavrões de calibre médio. Conclusão: sobra-me muito pouco ou nada.

 

Estou num beco sem saída. Quando mais preciso dos palavrões é que eles não estão lá para me ajudar. E onde estão os pediatras, os pedagogos e o raio que o parta quando precisamos deles? São capazes de discorrer meia hora sobre os benefícios do abacate para os catraios e nem uma palavra sobre o que realmente interessa. Não há sequer um livro de auto-ajuda intitulado “Como lidar com a privação de asneiras na parentalidade.” Então e aquela história de um pai feliz ser meio caminho andado para uma criança feliz, onde está?

 

Para compensar a repressão doméstica, proponho que os pais de filhos pequenos estejam autorizados a dizer asneiras na via pública, desde que devidamente identificados. Se por acaso um pai ou uma mãe perderem o metro ou o autocarro podem largar um “foda-se!” sem mais explicações. E se alguém se indignar basta que o visado puxe de um documento comprovativo de parentalidade.

 

Chego à conclusão que abdicar de dizer palavrões é a maior prova de amor que um pai pode dar a um filho. Mas acho que não estou para isso. Se calhar vou comprar uma daquelas buzinas do desporto, que fazem FUOOOOOOOOOOOOOONN! Ando sempre com ela em casa e quando me apetecer asneirar em frente aos meus filhos toco a buzina para abafar o ruído e digo os maiores palavrões que me vierem à cabeça. O pior que pode acontecer é os vizinhos acharem que sou grande fã de futebol. E que não dispenso a minha buzinadela mal acordo. “O quê, as crianças já acordaram? Às 6h00 da manhã?! FUOOOOOOOOOOOOOOONN!”

(http://lifestyle.publico.pt/vidaemgrandeestilo/339673_privacao-de-asneiras-na-parentalidade)

As crianças são como cobras

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Olho para a fotografia do meu filho com dois anos e já não reconheço aquela pessoa. E como é possível se só passaram dois anos? Sei que vivi aquilo. Que foi assim. Que ele era assim. Mas por mais que me esforce por reconstituir a figura completa dele – viva e tridimensional –, já não consigo. Agora ele já é outro. Já é outra pessoa.

 

Se houvesse uma espécie de Polícia da Parentalidade estava tramado. Mandavam-me parar na rua e diziam-me:

- Tenho aqui uma foto do seu filho com 2 anos, para verificar se é mesmo o pai. Acha que consegue identificá-lo?

- Penso que sim. Posso ver a foto?

- Não, não pode. Terá de descrever-mo. Dê-me alguns pormenores que sejam relevantes.

- Tinha cabelo encaracolado.

- Certo. E o formato da cara, como era?

- Não me lembro bem. Arredondado?

- Bem, isso são quase todos. E como falava, recorda-se?

- Não. Só me lembro de algumas palavras. Ou nem isso. Já confundo tudo.

- Pois. E a voz, como era?

- Não me lembro.

- Mas o senhor não é pai dele?

- Sou, mas…

- Acompanhe-me à esquadra, se faz favor.

 

O meu filho já foi recém-nascido, já foi bebé de poucos meses, de alguns meses, de um ano, já foi criança pequenina e agora já é criança. Identifico pelo menos seis ou sete pessoas em quatro anos. Ouço dizer: “Eles crescem tão depressa.” Depressa é eufemismo. Nos primeiros anos as crianças são uma espécie de cobras em câmara rápida. Mudam de pele a cada dez minutos. Muitas vezes dou por mim de manhã a jogar o jogo do “Descubra as diferenças”, para tentar perceber o que mudou literalmente da noite para o dia. “Está diferente. Parece-me que a cara alongou um pouco. Ou será do bigode? Acho que ontem à noite não tinha bigode.”

 

É como se as várias etapas de crescimento fossem estratos geológicos. E as camadas sobrepõem-se a tal velocidade que é quase impossível lembrar-me do que ficou para trás. Como antigas civilizações que se soterram umas às outras. Civilizações perdidas. O meu filho bebé é como se fosse algo do tempo dos fenícios. Devia haver um pedo-arqueólogo, para nos ajudar a desenterrar memórias antigas.

 

“Como pode ver, este artefacto que produz uma música irritante e repetitiva é típico dos 6 meses de idade, de quando eles se aprendem a sentar.” “Sim, sim, lembro-me bem dessa música irritante.” “Então já se lembra do seu filho nessa idade!” “Não. Mas lembro-me perfeitamente da música irritante. Disso não me esqueço.”

 

Parece que o tempo passa mais depressa ao pé de uma criança. Elas são autênticos catalisadores temporais. Aposto que há pessoas que evitam conviver com crianças para não terem consciência que estão a envelhecer rapidamente. Proponho inclusive “a tortura da criança”, para criminosos que sejam particularmente sensíveis à passagem do tempo e ao envelhecimento. Basta expô-los ao convívio diário com uma criança para os conseguir quebrar num interrogatório. Um detective para o criminoso: “Ou falas ou mando entrar a criança!” “Não! A criança outra vez, não!” “E olha que já cresceu desde ontem! Já tem bigode!” “Não quero ver! Eu falo! Eu falo!”

 

Nesta fase dos 4 anos, em que as frases e as palavras começam a ficar claras e sem o típico arrastado infantil, sem sopinhas de massa na voz, fico muito contente que o meu filho ainda diga “entorneira” em vez de “torneira”, “águas amarelas” em vez de “aguarelas” ou “massandes” em vez de “sandes”. Quer dizer que ainda lá está qualquer coisa de uma pele anterior. Qualquer coisa que eu reconheço. Qualquer coisa a que me agarrar. Penso: “Houston, ainda temos contacto. Ele ainda cá está. Ainda não se transformou completamente noutra pessoa.”

 

Eu sei que a criança tem de ser autónoma e ir à sua vida. Mas deixem-me gozá-la um momento ou dois; como um visitante de presidiário, que sorve desesperadamente o que pode, antes que lhe levem a pessoa amada. “Ele agora tem de ir!” “Está certo. Porta-te bem! E vê lá o que comes! Não te enchas de Bollycaos, ouviste? Come antes uma massandes.”

(http://lifestyle.publico.pt/pontalingua/339338_as-criancas-sao-como-cobras)

Pior que adultério

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Ser irmão mais velho é tramado. Por vezes olho para o meu filho mais velho e sinto-o a fervilhar de ciúmes. Até pode não transparecer, mas eu sinto que lá por dentro há várias camadas de raiva a formarem-se naquela cabecita de 4 anos.

 

Os sintomas podem ser um olhar fixo no irmão, de quem está a estudar o local exacto onde um murro pode ter maior impacto – como o tiro certeiro que destrói a Estrela da Morte na “Guerra das Estrelas” –, ou então, quando as pessoas se riem de uma gracinha do irmão, um riso amarelo, de quem só se ri por nervoso miudinho, altura em que receio estar a criar um psicopata vingativo. Ainda bem que ele não conhece a história de Caim e Abel, senão diria: “Ai sim? Matou?” E ficaria alguns segundos pensativo.

 

Ter um irmão mais novo é pior do que adultério, porque, da perspectiva do irmão mais velho, é uma traição cometida mesmo à frente do nariz. O irmão mais velho viveu o idílio. Viveu o presépio. E o presépio tem muita força, senão os adultos não andavam ainda hoje a pôr bonequinhos numa casinha, como se fossem crianças. Três foi a conta que Deus fez. Se calhar porque não sabia fazer outras contas. Mas foi a que fez. E o filho mais velho não concebe o mundo de outra maneira. O irmão mais novo é como um twist, um volte-face numa história predefinida. Só que uma criança pequena não está habituada a volte-faces nas histórias, porque ainda não viu muitos filmes.

 

Se calhar a solução passa por pôr o filho mais velho a ver muitos filmes de Hollywood, para se habituar à ideia de ter um irmão. Se o nascimento do irmão fosse um trailer de Hollywood seria, na cabeça dele, qualquer coisa como:

«Ele era feliz. Tinha o pai e a mãe só para ele e tudo parecia perfeito. Um autêntico paraíso na Terra.

Até que de repente surgiu algo inesperado. E as coisas nunca mais foram as mesmas!

“Onde é que está o mano?” “Está a dormir connosco no quarto.” (Gritos. Choros. Convulsões)

Do mesmo realizador de “Pesadelo em Elm Street 4”, chega-nos agora “O irmão mais novo”.

Num cinema perto de si.»

 

A vinda do irmão mais novo é o que se chama em cinema de plot point. É o acontecimento que precipita a acção. Neste caso, a acção de dar tabefes; que é a única coisa de jeito que dá para fazer com um irmão mais novo nos primeiros tempos. Para o filho mais velho, o irmão é, na melhor das hipóteses, um investimento a médio prazo. E digamos que uma criança pequena não é a pessoa ideal a quem explicar: “Olha, vais ter de fazer um investimento a médio prazo.”

 

O meu irmão mais velho só começou a ver verdadeira utilidade em mim nos dias em que davam filmes ou séries de terror na televisão e dormia na minha cama. Acontecia geralmente nos dias em que dava o Hitchcock – algures nos anos 80 –, série que nos fazia ir para a cama de olhos esbugalhados, transidos de medo. Nunca mais me esqueci de um episódio que terminava com o assassino atrás da porta, de facalhão em punho, enquanto a vítima fechava lentamente a porta a achar que já se tinha livrado do pior. Fim de episódio. Entra música do Hitchcock. Criança de 6 anos petrificada com coração a 300 à hora, como se tivesse bebido 7 bicas de penalty.

 

Após breve conferência, eu e o meu irmão chegávamos rapidamente à conclusão que era boa ideia dormirmos na mesma cama, uma vez que parecíamos mochos taquicardíacos.

 

Acho que nunca dormi um sono tão repousado e tão seguro como quando dormia com o meu irmão na mesma cama. Era como se a cama fosse de repente uma redoma indestrutível, a salvo de toda e qualquer ameaça. O que faz todo o sentido, porque se entrasse um larápio por ali a dentro diria certamente: “Bolas, vou ter de bater-me com uma criança de 6 anos e outra de 9 ao mesmo tempo! Não tenho hipótese! Vou mas é fugir!”

 

Se hoje em dia eu e o irmão temos uma relação minimamente decente devemo-lo ao Hitchcock e ao senhor que fazia a programação da RTP. Obrigado, senhor. Se calhar o problema de Caim e Abel é que nunca dormiram na mesma cama. Porque se tivessem dormido não andavam aí à bulha e a matar-se.

 

Também tenho esperança que os meus filhos se entendam. Mas, para já, o meu filho mais velho continua a ver sobretudo no irmão um bom saco de pancada, porque relativamente mole e apático. No entanto, há sinais de esperança, porque começaram a dormir no mesmo quarto e parecem não desgostar da ideia. Se calhar vou pôr-lhes um Hitchcockezinho para estreitar laços. “Vá, já chega de Canal Panda. Vamos aqui ver uma história gira com um senhor de facalhão.” “Onde é que está o senhor de facalhão, papá?” “Está atrás da porta. Divirtam-se. Até logo.”

(http://lifestyle.publico.pt/vidaemgrandeestilo/339058_pior-que-adulterio)

CU-CURROO

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Os pombos já não são bem animais. Os pombos já são pessoas. Porque são os únicos animais que, tal como nós, olham para a natureza e pensam: “‘Tá aqui uma coisa bem feita. Agora só falta o betão.”

 

Os pombos – e refiro-me obviamente aos que vivem num qualquer parapeito urbano perto de si – não precisam das árvores para nada. Aliás, nunca precisaram. O seu equivalente selvagem vive em parapeitos rochosos, junto ao mar. E em boa hora foi trazido para o contacto com os humanos, na sua perspectiva, porque dispõe actualmente nas cidades de excelentes parapeitos – com pavimento liso e uma boa área útil – e a adaptação não podia ter corrido melhor. Aliás, ele já não quer outra coisa. Pão, água e cimento é tudo o que é preciso para o pombo vingar.

 

E os pombos não estão nada contentes com esta moda da reabilitação urbana. Eles querem novos fogos, novas habitações. Eles querem progresso. Querem dinheiros europeus. Querem o Engenheiro Ferreira do Amaral de volta. Ainda hoje se viram uns para os outros e dizem: “Lembras-te do Ferreira do Amaral?” “Bons tempos! Nos anos 90 é que era.” O sonho deles era ver a Terra toda forradinha de cimento, da Antárctida ao Pólo Norte. E não era por qualquer tipo de ambição de colonização ou coisa que o valha. Mas porque acham que ficava bonito. Como quem acha bonito um anão de loiça no quintal.

 

A verdade é que os pombos estão muito desgostosos com a actual crise na construção civil. Aposto que muitas construtoras só sobrevivem porque recebem donativos de pombos. Há pombos que, sem elas perceberem bem como, pousam regularmente nos parapeitos das janelas da Somague e da Mota-Engil com 50 euros no bico, para que o betão nunca pare de rolar nas máquinas. O cu-curroo que emitem quando entregam as notas pode ser traduzido por “agora façam o vosso trabalho”.

 

Se certos placares das obras quisessem ser justos e transparentes, diriam “esta obra foi co-financiada pelo FEDER e por pombos”. Mas isso eles não dizem. Bico calado. Está talvez na altura de investigar o lobby dos pombos.

 

Mas para além da corrupção, há cada vez mais delinquência entre os pombos. No outro dia tinha a janela aberta e ouvi barulho na cozinha. Fui ver. Eram três pombos. Dois estavam às bicadas ao saco de plástico do pão como se não houvesse amanhã. O outro estava a comer batatas fritas. E provavelmente a curtir a cena dos outros dois às bicadas ao plástico, enquanto saboreava as batatas. Estive para lhe perguntar se não queria uma Coca-Cola para acompanhar.

 

O índice de criminalidade “pombalino” atingiu tal magnitude, que há que começar a tomar medidas. Eu sou da opinião que a própria expressão “associação columbófila” devia ser criminalizada. Devia haver notícias do género: “Foram hoje detidos dois indivíduos suspeitos de tráfico de armas e associação columbófila. Os dois suspeitos, com idades compreendidas entre os 8 e os 90 anos, têm já um vasto historial de crime violento e criação de pombos e encontravam-se na posse de pistolas, espingardas e várias sacas de milho.”

(http://lifestyle.publico.pt/vidaemgrandeestilo/338818_cu-curroo)

Viagem ao submundo das rifas

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Quando era pequeno e ia comprar rifas na quermesse da paróquia local, tudo se passava segundo um ritual e um protocolo que apenas serviam para confirmar o mundo circular e perfeito em que vivia. E que bem que isso me sabia. Um mundo redondinho, quentinho, seguro e previsível. Em que a vida se processava como um relógio suíço. O que é que uma criança pode pedir mais? Ou seja, a pessoa comprava rifas, neste caso a criança palerma e ingénua, ou devo dizer estúpida e inocente, e umas vezes não saía prémio, o que era uma desolação, mas ao mesmo tempo era bom porque fazia parte do mundo redondinho e quentinho; aceitava-se o infortúnio e ficava-se contente. E outras vezes saía prémio e ficava-se igualmente contente.

 

Bem, contente é dizer pouco, porque ganhar dava direito a orgasmos de felicidade – que nas crianças são mil vezes mais intensos do que nas crianças adultas –, mesmo que o prémio fosse a maior bugiganga ao cimo da Terra. Uma bugiganga tão grande, mas tão incrivelmente grande, que nunca ninguém pensou que pudesse existir alguém capaz de fabricar tal bugiganga. Geralmente eram objectos de louça ou de porcelana e atingiam o grau máximo de inutilidade na escala de Richter, mesmo para a criança mais estúpida e mais sorvedora de bibelots à face da Terra. Mas era para mim uma alegria muito grande ganhar uma bugiganga daquelas, oh meu deus, era inexplicável de boa.

 

Todavia, na aldeia da família da minha mulher, na Beira Alta, as rifas ganharam uma nova dimensão aos meus olhos. Uma dimensão que desconhecia do mundo rifeiro e que nunca imaginei possível. Tudo porque fiz parte da comissão de organização da festa de Verão – essa importante entidade –, não como membro principal, mas como ajudante, e coube-me ficar na barraca de rifas com a minha mulher. Por isso agora falo como pessoa que está do outro lado da barraca. Como vendedor de rifas. Como insider.

 

E qual não é o meu espanto quando me vejo confrontado com todo um novo conjunto de regras rifeiras. Primeiro que tudo, sai sempre prémio. Ou seja, não há rifas em branco. Sai-se sempre a ganhar. Lamento, mas desconhecia este universo das “rifas sai sempre”, que entretanto percebi que está largamente disseminado. E que é equivalente, no mundo das rifas, a saltar directamente do neolítico para a revolução industrial, ou qualquer coisa do género. É uma autêntica bomba nuclear, que muda por completo o funcionamento suíço do mundo rifeiro. E eu que pensava que a piada das rifas estava em testar a sorte. Na incerteza do frustrar ou vencer. Que o conceito era precisamente esse. Senão rifas não eram rifas. Era isso que me parecia fazer do mundo uma coisa perfeita, redondinha e quentinha quando era criança. Mas pelos vistos nem toda a gente pensa assim. Há quem ache que o que se quer é ver pessoas contentes e alegres para comprarem mais rifas. E a verdade é que não consigo discordar desta abordagem. Tem a sua legitimidade.

 

E uma vez refeito deste primeiro choque, eis que a minha mulher, grande comandante e cérebro da barraca de rifas, não contente com a introdução deste sistema revolucionário, propôs acrescentar outra novidade. Perante o caos de objectos dispersos ao acaso pela barraca e a dificuldade de encontrar os números correspondentes a cada rifa, achou-se por bem não levar propriamente à risca a numeração das rifas. Ou seja, se a rifa dissesse “27”, isso podia não querer dizer necessariamente 27, mas 456. Conforme o objecto que estivesse mais a jeito. Melhor ainda, pensou ela, porque não decidirmos nós o objecto a atribuir a cada pessoa, independentemente do número? Sim, porque não? – respondi eu. E eis que estava dado o passo definitivo para a criação de uma nova e desconhecida realidade rifeira, à qual me entreguei com total disponibilidade e coração aberto.

 

E com base em que critérios atribuíamos os objectos a cada pessoa? Simples. Critérios perfeitamente arbitrários. Olhávamos mais ou menos para a criatura e decidíamos o que era melhor para ela. Se gostássemos dela, se fosse simpática, levava os melhores prémios, que iam desde a bola de futebol ao mui cobiçado capacete de bicicleta. Se fosse parva levava um bibelot horrível ou a bolsa do Correio da Manhã de 1975.

 

Mas é claro que este novo sistema trouxe vários problemas, porque a certa altura as pessoas perceberam que as rifas eram uma grandessíssima patranhada e que nós escolhíamos aquilo que queríamos – isto quando não lhes dizíamos directamente para escolherem o que queriam. Houve inclusive um pai extremoso que, ao aperceber-se da farsa rifal, disse ao seu petiz: “Toma lá dinheiro para 10 rifas, mas não te esqueças de pedir a garrafa de vodka.”

 

Outro fenómeno comum era que as pessoas, quando confrontadas com a escolha, não sabiam o que escolher. E essas indecisas pareciam sair de lá com um certo amargo de boca, com ar de quem não fez a melhor escolha possível. “Caraças, deve haver melhor do que este bloco roxo do Snoopy.” Pelo contrário, havia também as pessoas resolutas, que não podiam sair mais contentes. Como a miúda adolescente que entrou na barraca que nem um míssil a apontar para uns cavalos de porcelana entrelaçados, que eram provavelmente a coisa mais foleira da barraca e do mundo e que eu pensei que seria o último item escolhido. Mas nunca me enganei tanto na vida. A miúda estava feliz, mas feliz. Ela saiu dali como entrou, um projéctil de felicidade. Quando vi a felicidade dela com aquela porcaria nas mãos, a maior porcaria da barraca, fiquei siderado, sem palavras. Como era possível que alguém escolhesse aquilo? Mas ela escolheu. Foi um momento que abalou toda e qualquer teoria de consenso de gostos que eu pudesse ter e me fez vergar perante o fascínio da diversidade. Entretanto, começou também a assistir-se a processos de corrupção, porque as pessoas próximas dos colaboradores da barraca moviam influências para levar o bibelot de porcelana que melhor servia os seus interesses ou a iogurteira anos 80 dos seus sonhos. Isto já para não falar nos desvios de objectos pelos próprios colaboradores da barraca, se viam alguma coisa que lhes fazia jeito. Enfim, nada de novo neste mundo.

 

Este novo sistema de rifas, apesar das várias contrariedades, teve para mim um saldo bastante positivo. Porque a maior parte das pessoas pareciam contentes com as coisas que lhes eram atribuídas. Também é verdade que as poucas pessoas a quem decidimos entregar objectos segundo o sistema antigo, ou seja, número 12 quer mesmo dizer número 12, ficavam igualmente contentes. Por isso, não é possível tirar grandes conclusões quanto ao melhor sistema a adoptar. O certo é que para nós, vendedores de rifas, era muito mais interessante a nova abordagem. Porque podíamos brincar aos deuses e manipular o destino, sob o falso pretexto de fazer os outros felizes. “É esse o número que tens, pequenito? Pois não é esse o objecto que vais ter. Vais ter o objecto que eu decidir que vais ter!” Há lá coisa mais divertida do que isso.

(http://lifestyle.publico.pt/pontalingua/338525_viagem-ao-submundo-das-rifas)

Nostalgia em tempos de tablet

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Por volta dos meus vinte e poucos anos deu-me um ataque de nostalgia e desatei a ouvir músicas da infância. Foi de tal maneira que o meu médico me aconselhou a parar, porque tinha os níveis de Dartacão muito elevados no sangue. Disse que se continuasse assim ainda podia ter um Acidente Vascular Nostálgico.

 

Mas não sou só eu que sofro disto. Há uma onda nostálgica que varre a sociedade. Desde as pessoas da minha geração, que enfrentam sérios problemas de Dartacão e Abelha Maia, até aos mais velhos, que anseiam muitos deles por se reunir nos Céus com Vasco Santana e, se houvesse possibilidade, fariam sem hesitar a colecção de livros do Salazar, ao estilo Anita: “Salazar vai a Fátima”, “Salazar no ballet”, “Salazar cai da cadeira”, etc. Isto já para não falar daqueles casos mais graves de pessoas que ainda vivem com uma perna no séc. XIX. E que sonham certamente com ideais românticos de uma vida mais pacata e com pessoas de monóculo. Dizem: “Se o Eça de Queiroz fosse vivo...” Se o Eça de Queiroz reencarnasse era provavelmente um velho caquéctico e passava o dia todo a ver “As tardes da Júlia” e “O preço certo em euros”. Caramba, de onde vem tanta nostalgia?

 

Talvez a explicação esteja na mais recente colectânea de músicas infantis do meu filho, adquirida em 2013, em que o Dartacão e pérolas da modernidade como a música do Buéréré de Ana Malhoa convivem lado a lado com musiquinhas antigas como “As pombinhas da Catrina” e “Rosinha do meio.” Já nem me lembrava que estas músicas antigas existiam se não fosse a felicidade de ter de as gramar outra vez.

 

A minha teoria é que estes clássicos de antanho passam discretamente de geração em geração e plantam uma sementinha de nostalgia em todos nós. Por todo esse país há criancinhas a viverem em prédios rodeados de alcatrão, que vibram ao som de “Ó rosinha, ó rosinha do meio, vem comigo malhar o centeio” ou “As pombinhas da Catrina andarão de mão em mão (...) minha mãe mandou-me à fonte e eu parti a cantarinha.” É incrível que neste mundo em que o meu computador fica obsoleto em 3 anos, a Rosinha continue a malhar o centeio e ainda se partam cantarinhas. Mas, por outro lado, há qualquer coisa de tranquilizador nisso. E de esquizofrénico. Parece que nunca fomos tão avançados e tão antiquados ao mesmo tempo.

 

E desconfio que a tendência é para piorar. À medida que o Manuel de Oliveira se transforma na regra e não na excepção, e que quem não chega a bisavó é totó, a ponte afectiva entre séculos aumenta. O que significa que temos o caldo perfeito para uma mistura nostálgica explosiva. Porque às modinhas antigas inoculadas numa fase pré-consciente do ser humano junta-se esse irresistível e perigoso fenómeno denominado de “amor de bisavó”; autêntico cimento afectivo, que se manifesta geralmente sob a forma de rebuçados do Dr. Bayard e de todo o tipo de apaparicanços anacrónicos que fazem parecer as bombocas uma invenção da modernidade.

 

Vamos ser lentamente emparedados entre rosinhas do meio e rebuçados do Dr. Bayard e nem nos apercebemos. E a verdade, meus amigos, é que é um doce emparedamento. Não há nada que possamos fazer. E se a bisavó falhar, levamos sempre com a Machadinha. Ou com a Padeirinha. Isso é que nunca falha. Há-de haver sempre uma modinha para espetar às crianças. Quando dermos por ela já temos sete ou oito Padeirinhas no bucho e o uso de monóculo começa a parecer perfeitamente aceitável.

 

O mais provável é que na primeira colónia portuguesa que se estabeleça no inóspito solo lunar as crianças ainda cantem: “Ó rosinha, ó rosinha do meio. Vem comigo malhar o centeio.” Não tenho nada contra, mas alguém diga à Rosinha que já pode parar de malhar. Arranjem uma debulhadora à rapariga.

(http://lifestyle.publico.pt/pontalingua/337522_nostalgia-em-tempos-de-tablet)

Adulto pai

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Ser adulto é a melhor coisa que há. Porque podemos fazer o que nos apetece. Sim, já sei, dentro de certos limites blá blá blá. A verdade, adolescentada, é que fazer 18 anos é mesmo das melhores coisas que há, digam o que disserem os vossos pais.

 

Ser adulto e pai ao mesmo tempo ainda é mais interessante. Porque se num minuto dizemos à criança “Não comes mais chocolates!”, com ar reprovador convicto, no outro estamos a atirar-nos alarvemente à caixa dos bombons às escondidas. Isto enquanto convocamos o perdigueiro que existe dentro de nós, para não sermos catados pela criancinha. Eu sinto as minhas orelhas a ficarem pontiagudas cada vez que vou às guloseimas.

 

A lógica é sempre a mesma “podemos fazer o que nos apetece, desde que os filhos não vejam.” Devia ser esse o lema oficial dos pais.

“O que é que fizeste, Gonçalo, tu mataste uma pessoa?!” “Sim, mas os nossos filhos não viram.” “Ah, ok.”

A fórmula é mais ou menos esta:

Direitos de adulto pai = Mesmos direitos de adulto sem filhos - Os filhos verem

 

Acontece que no outro dia o meu filho apanhou-me em flagrante a comer batatas fritas. Ainda tentei esconder o pacote, mas foi nesse preciso momento que ele me apanhou. O que ainda é mais vergonhoso. A mãozinha sorrateira a esconder o pacote atrás da almofada do sofá e o sacana: “Não, não, papá, não sejas mauzinho. Essas batatas são para mim.” Pânico, horror, paralisia completa do corpo e do cérebro.

 

Porque a partir do momento em que um pai é apanhado é a tristeza completa. Não só passa pela vergonha absoluta de um mau exemplo, de alguém que não tem autoridade moral nem para defender os direitos dos cidadãos da Trofa, como ainda por cima, neste caso, tem de partilhar as batatas.

 

E acho que isso ainda foi o que me custou mais. Eu não queria partilhar aquelas batatas com ninguém. Estavam a saber-me pela vida. Era o meu momento de descanso. O meu momento de prazer. Aquelas batatas eram minhas. Minhas! Não queria partilhá-las com puto ranhoso nenhum. Sangue do meu sangue, o tanas. Ele que vá trabalhar. Cada vez sou mais a favor do trabalho infantil. Deve ter sido assim que surgiu a célebre frase: “vai trabalhar, malandro!”, depois de um pacote de batatas fritas partilhado a contragosto. Um filho implica demasiado investimento. Eu sou da opinião que a partir dos 3 anos eles deviam começar a trabalhar, para atingir o break-even por volta dos seis e começarem a pagar os estudos. “Queres ir para a escola, vai trabalhar! Larga essa chucha de vez e faz alguma coisa na vida!” “Papá, posso ver o Pocoyo?” “Não, vais trabalhar na terra. No campo, que é o que está a dar! Quero essas mãos calejadas, gretadas, ensanguentadas de tanto apanhar alfarroba!” “Papá, onde é que se põe o canal do Pocoyo?” “É aqui.”

 

De qualquer modo, para evitar sermos apanhados em flagrante delito, o ideal seria ter uma espécie de alarme detector de crianças. Como aquela geringonça do Aliens que sinalizava a aproximação dos monstros e fazia um sonoro bip, cada vez mais intenso e audível, à medida que eles se aproximavam: “bip o teu filho está a 20 m, bip bip está a 10 m, bip bip bip bip está a 5 m! Despacha-te, come o chocolate!” Na impossibilidade de ter este objecto, só há uma solução, é ter consciência que, apesar de sabermos que por dentro somos uns vermes abjectos capazes das maiores indignidades, por fora a carapaça tem de estar impecável, com o verniz a cintilar. De preferência, sem chocolate nos beiços.

(http://lifestyle.publico.pt/vidaemgrandeestilo/336932_adulto-pai)

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