Quando era pequeno e ia comprar rifas na quermesse da paróquia local, tudo se passava segundo um ritual e um protocolo que apenas serviam para confirmar o mundo circular e perfeito em que vivia. E que bem que isso me sabia. Um mundo redondinho, quentinho, seguro e previsível. Em que a vida se processava como um relógio suíço. O que é que uma criança pode pedir mais? Ou seja, a pessoa comprava rifas, neste caso a criança palerma e ingénua, ou devo dizer estúpida e inocente, e umas vezes não saía prémio, o que era uma desolação, mas ao mesmo tempo era bom porque fazia parte do mundo redondinho e quentinho; aceitava-se o infortúnio e ficava-se contente. E outras vezes saía prémio e ficava-se igualmente contente.
Bem, contente é dizer pouco, porque ganhar dava direito a orgasmos de felicidade – que nas crianças são mil vezes mais intensos do que nas crianças adultas –, mesmo que o prémio fosse a maior bugiganga ao cimo da Terra. Uma bugiganga tão grande, mas tão incrivelmente grande, que nunca ninguém pensou que pudesse existir alguém capaz de fabricar tal bugiganga. Geralmente eram objectos de louça ou de porcelana e atingiam o grau máximo de inutilidade na escala de Richter, mesmo para a criança mais estúpida e mais sorvedora de bibelots à face da Terra. Mas era para mim uma alegria muito grande ganhar uma bugiganga daquelas, oh meu deus, era inexplicável de boa.
Todavia, na aldeia da família da minha mulher, na Beira Alta, as rifas ganharam uma nova dimensão aos meus olhos. Uma dimensão que desconhecia do mundo rifeiro e que nunca imaginei possível. Tudo porque fiz parte da comissão de organização da festa de Verão – essa importante entidade –, não como membro principal, mas como ajudante, e coube-me ficar na barraca de rifas com a minha mulher. Por isso agora falo como pessoa que está do outro lado da barraca. Como vendedor de rifas. Como insider.
E qual não é o meu espanto quando me vejo confrontado com todo um novo conjunto de regras rifeiras. Primeiro que tudo, sai sempre prémio. Ou seja, não há rifas em branco. Sai-se sempre a ganhar. Lamento, mas desconhecia este universo das “rifas sai sempre”, que entretanto percebi que está largamente disseminado. E que é equivalente, no mundo das rifas, a saltar directamente do neolítico para a revolução industrial, ou qualquer coisa do género. É uma autêntica bomba nuclear, que muda por completo o funcionamento suíço do mundo rifeiro. E eu que pensava que a piada das rifas estava em testar a sorte. Na incerteza do frustrar ou vencer. Que o conceito era precisamente esse. Senão rifas não eram rifas. Era isso que me parecia fazer do mundo uma coisa perfeita, redondinha e quentinha quando era criança. Mas pelos vistos nem toda a gente pensa assim. Há quem ache que o que se quer é ver pessoas contentes e alegres para comprarem mais rifas. E a verdade é que não consigo discordar desta abordagem. Tem a sua legitimidade.
E uma vez refeito deste primeiro choque, eis que a minha mulher, grande comandante e cérebro da barraca de rifas, não contente com a introdução deste sistema revolucionário, propôs acrescentar outra novidade. Perante o caos de objectos dispersos ao acaso pela barraca e a dificuldade de encontrar os números correspondentes a cada rifa, achou-se por bem não levar propriamente à risca a numeração das rifas. Ou seja, se a rifa dissesse “27”, isso podia não querer dizer necessariamente 27, mas 456. Conforme o objecto que estivesse mais a jeito. Melhor ainda, pensou ela, porque não decidirmos nós o objecto a atribuir a cada pessoa, independentemente do número? Sim, porque não? – respondi eu. E eis que estava dado o passo definitivo para a criação de uma nova e desconhecida realidade rifeira, à qual me entreguei com total disponibilidade e coração aberto.
E com base em que critérios atribuíamos os objectos a cada pessoa? Simples. Critérios perfeitamente arbitrários. Olhávamos mais ou menos para a criatura e decidíamos o que era melhor para ela. Se gostássemos dela, se fosse simpática, levava os melhores prémios, que iam desde a bola de futebol ao mui cobiçado capacete de bicicleta. Se fosse parva levava um bibelot horrível ou a bolsa do Correio da Manhã de 1975.
Mas é claro que este novo sistema trouxe vários problemas, porque a certa altura as pessoas perceberam que as rifas eram uma grandessíssima patranhada e que nós escolhíamos aquilo que queríamos – isto quando não lhes dizíamos directamente para escolherem o que queriam. Houve inclusive um pai extremoso que, ao aperceber-se da farsa rifal, disse ao seu petiz: “Toma lá dinheiro para 10 rifas, mas não te esqueças de pedir a garrafa de vodka.”
Outro fenómeno comum era que as pessoas, quando confrontadas com a escolha, não sabiam o que escolher. E essas indecisas pareciam sair de lá com um certo amargo de boca, com ar de quem não fez a melhor escolha possível. “Caraças, deve haver melhor do que este bloco roxo do Snoopy.” Pelo contrário, havia também as pessoas resolutas, que não podiam sair mais contentes. Como a miúda adolescente que entrou na barraca que nem um míssil a apontar para uns cavalos de porcelana entrelaçados, que eram provavelmente a coisa mais foleira da barraca e do mundo e que eu pensei que seria o último item escolhido. Mas nunca me enganei tanto na vida. A miúda estava feliz, mas feliz. Ela saiu dali como entrou, um projéctil de felicidade. Quando vi a felicidade dela com aquela porcaria nas mãos, a maior porcaria da barraca, fiquei siderado, sem palavras. Como era possível que alguém escolhesse aquilo? Mas ela escolheu. Foi um momento que abalou toda e qualquer teoria de consenso de gostos que eu pudesse ter e me fez vergar perante o fascínio da diversidade. Entretanto, começou também a assistir-se a processos de corrupção, porque as pessoas próximas dos colaboradores da barraca moviam influências para levar o bibelot de porcelana que melhor servia os seus interesses ou a iogurteira anos 80 dos seus sonhos. Isto já para não falar nos desvios de objectos pelos próprios colaboradores da barraca, se viam alguma coisa que lhes fazia jeito. Enfim, nada de novo neste mundo.
Este novo sistema de rifas, apesar das várias contrariedades, teve para mim um saldo bastante positivo. Porque a maior parte das pessoas pareciam contentes com as coisas que lhes eram atribuídas. Também é verdade que as poucas pessoas a quem decidimos entregar objectos segundo o sistema antigo, ou seja, número 12 quer mesmo dizer número 12, ficavam igualmente contentes. Por isso, não é possível tirar grandes conclusões quanto ao melhor sistema a adoptar. O certo é que para nós, vendedores de rifas, era muito mais interessante a nova abordagem. Porque podíamos brincar aos deuses e manipular o destino, sob o falso pretexto de fazer os outros felizes. “É esse o número que tens, pequenito? Pois não é esse o objecto que vais ter. Vais ter o objecto que eu decidir que vais ter!” Há lá coisa mais divertida do que isso.
(http://lifestyle.publico.pt/pontalingua/338525_viagem-ao-submundo-das-rifas)