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Gonçalves

O fruto menos apetecido

Hendrick Goltzius

Dizem que a maçã é o fruto proibido e que o fruto proibido é o mais apetecido. Mas a quem é que apetece assim tanto uma maçã?

Em minha casa, onde somos quatro (uma amostra espectacular, bem sei) é sempre o último fruto a ser comido. Primeiro vão as bananas, que são docinhas, moles e descascam-se num instante, granjeando forte sucesso junto do público infantil. Depois marcham frutos mais sazonais, apetitosos e fáceis de comer, como pêssegos, morangos, uvas, cerejas, alperces. Seguindo-se frutos exóticos ou mais raros, que é preciso descascar, como manga, papaia, melão, ananás. Depois vão frutas mais banais, mas ainda assim apetecíveis, como tangerinas, laranjas, kiwis, pêras. E, por fim, as maçãs.

Estou a comparar fruta ao natural, como é óbvio, porque maçã reineta assada, com toneladas de açúcar em cima, não vale, é doping. E é claro que a ordem por que comemos as frutas tem um lado caótico e aleatório, mas, se organizássemos as frutas por equipas, a hierarquia seria mais ou menos esta, ficando as maçãs quase sempre para o fim da fila.

Aliás, ainda as maçãs povoam a fruteira e já estamos a comprar novas frutas, porque a maçã, até pela sua longevidade de tartaruga, vai ficando. Às tantas sinto que as maçãs se tornam quase ornamentais, porque, sem elas, a fruteira fica despida. Assim, com elas lá, sempre se mantém um colorido constante, como flores falsas numa jarra. O problema é que isso pode sedimentar a ideia de que elas não são para comer. Quando me decido, por fim, a comer uma delas é como se estivesse a retirar uma pequena peça de mobília da cozinha ou um bibelô da prateleira.

A certa altura, já as reconheço individualmente: há a que tem um pequeno buraco preto, a outra que tem duas manchinhas castanhas que sei que terei de tirar com a faca se a quiser comer, ou aquela que é mais vermelha que o normal e por isso mais apetecível, mas não o suficiente para me dar ao trabalho de a comer. Ao fim de várias semanas de convívio é tal a familiaridade que quase nos tratamos por tu. Quando olho para elas, sempre as mesmas de manhã quando entro na cozinha, é como se trocássemos um tácito “Cá estamos.”

Nunca fomos tão próximos, eu e as maçãs. A nossa relação já foi bem pior. Na infância tinha-lhes aversão – recordo-me sobretudo de pêros massudos, a enrolarem-se-me na boca. E eu perguntava “O que é um pêro?” E respondiam-me “É uma maçã.” E, não sei porquê, esta ideia nunca me entrou muito bem na cabeça.

E também achava a cena do Pecado Original da Bíblia uma parvoíce, porque Adão e Eva, num sítio chamado Jardim das Delícias, com fruta do bom e do melhor, perdiam a cabeça por uma maçã. E eu pensava “Uma maçã? Que mau gosto.” Para mim, era o equivalente a ir à melhor pastelaria do mundo, com bolos maravilhosos e salgados óptimos, e escolher o folhado de espinafres.

Como é bom de ver, ainda hoje não adoro maçã. E só como a variedade Fuji, porque acho mais doce e rijinha, o resto não funciona para mim. Reconheço que, quando tudo falha, e as restantes frutas desaparecem ou apodrecem, deixando-nos entregues à bicharada, lá está a maçã para salvar o dia, como a última moicana da fruteira. Por mais rejeições que sofra, aguenta-se o mais que pode e não nos abandona, como se fosse a mais adulta e responsável das frutas.

Entretanto, até descobri uma maneira de gostar mais delas, não só pelas suas qualidades adultas e decorativas, mas também pelas alimentícias: cortando-as em pedaços. Inovador, certo? (ler com ironia) A ideia de comer uma maçã inteira continua a desencorajar-me, mas percebi que se a cortar em quatro ou cinco pedaços fica muito mais apetitosa. O que é estranho, porque é praticamente a mesma quantidade de maçã. Há qualquer coisa de mágico nos pedaços. Se calhar porque assim não se parece com maçã.

Mentira, maçã, estou a brincar. Não te ofendas. Sinto que eu e tu temos feito progressos ao longo da minha vida. Se eu chegar aos 120, e ainda tiver dentes, quem sabe se num dia muito bom, e com pouca fruta, não serás uma segunda escolha, logo atrás da tangerina?

A dureza das Pistas Brandas

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Voltei aos parques aquáticos, por causa dos meus filhos, quebrando um jejum com 30 anos. E uma das estrelas do parque a que fomos é um grande escorrega acolchoado, dividido em várias pistas, em tudo igual àquele em que me diverti muitas vezes na adolescência, no extinto Ondaparque da Costa da Caparica.

Por isso, quando voltei a pisar este escorrega, foi com alegria que tomei o meu lugar no alto do tapete, pronto para descer toda aquela fofura. Mas, assim que o vigilante deu sinal de partida, comecei a assustar-me. Já não me lembrava que aquilo era tão escorregadio, senti-me como um gato desesperado a patinar em sabonete. Queria controlar o corpo mas ele não obedecia. A certa altura, senti que podia virar-me de cabeça para baixo e entrei em pânico. A descida durava poucos segundos mas parecia uma eternidade. Lá consegui não me virar por completo e desci estupidamente inclinado até cair na piscina.

Saí da água assarapantado, sem perceber bem o que tinha acontecido. Foi uma descida estranha, porque uma parte de mim até tinha curtido a viagem, enquanto outra parte passara o tempo todo a rogar pragas àquele tapete filho da mãe por querer dispor do meu corpo daquela maneira.

Estava nestas cogitações quando os meus filhos disseram: “Vamos descer outra vez!” E lá fui também, por arrasto. Pelo menos desta vez já conhecia as manhas do escorrega e, quando me vi de novo no alto do tapete, convoquei todos os músculos que conhecia, retesando-os ao máximo, para ir direito que nem homem-bala. Pensei: “Não me vais entortar desta vez, sacana!” Mas entortou. O sacana. E voltou a entortar-me mais uma ou duas vezes nesse dia, porque os meus filhos não se cansavam daquela esponja pérfida e eu não arranjava maneira de contrariar aquelas guinadas do demo.

Senti-me piurso, frustrado, porque a única coisa que ganhei em oferecer tanta resistência ao escorrega foi um torcicolo. Ao mesmo tempo, não percebia porque reagia assim na pista, tão control freak. Quase toda a gente deslizava naquele tapete de forma descontraída e esparvoada – desde a criancinha caga-tacos que caía desamparada e feliz na água com um chapão nas trombas até à avozinha de família que descia a fazer breakdance –, mas a mim deu-me para ser pudico de movimentos. Tenho ideia de que na adolescência também fazia parte do clube dos esparvoados. O que aconteceu entretanto? Não sei se agora tinha mais medo do ridículo, horror ao descontrolo ou outra coisa qualquer, mas sei que parecia um lorde inglês a deslizar, com a postura de quem nunca põe um cotovelo em cima da mesa e imagina uma preceptora suíça na cabeça a dizer: “Ponha-se direito no tapete!”, “Não se cai de rabo na água!”

Entretanto, reparei que chamavam àquele escorrega “Pistas Brandas”. E isso irritou-me ainda mais. Brandas o tanas! Por esta altura já tinha enfrentado escorregas com nomes como “A Grande Onda”, “Queda à Pique”* ou “Kamikaze” e nenhum me tinha desconcertado desta maneira. N’“A Grande Onda”, por exemplo, senti uns calafrios que me fizeram dar graças no final por ainda estar vivo, mas as “Pistas Brandas” desafiavam-me a um nível mais profundo, existencial.

Daí que, quando os meus filhos suplicaram, mesmo antes de fechar o parque, para voltarmos novamente às ditas Brandas, eu estremeci por dentro. Engoli em seco e lá fomos. Assim que chegámos, o vigilante apontou-nos os nossos postos, qual carniceiro do divertimento. Encarei aquele tapete pela última vez, cansado, como um touro que já levou várias farpas no lombo. Recebemos luz verde para deslizar e o monstro esponjoso fez a sua parte, tentando por todos os expedientes virar-me ao contrário, até que atingi aquele ponto fatídico em que o corpo está prestes a rodar de cabeça para baixo. Dei por mim sem reacção, virei-me mesmo do avesso e comecei a rodopiar sem parar. E senti-me bem. Senti que só me apetecia continuar ali às voltas naquele colchão fofo e molhado, como chávena embalada num carrossel.

* Nomes originalmente em inglês que traduzi livremente para português à revelia de várias entidades, incluindo vários gnomos.

Coisas d'Albânia

Estive na Albânia e há coisas importantes que posso dizer do país. A saber:

1. Os napperons ainda estão muito fortes na Albânia.

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2. Os texugos já estiveram mais fortes na Albânia.

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Porque este pobre moço (ou moça – não averiguei) já era. Tenho de confessar que, ao princípio, fiquei muito entusiasmado de ver o texugo morto à beira da estrada, porque, apesar de ter feito um curso de biologia que incluiu saídas de campo nocturnas para ver bicharada, nunca tinha visto este animal de tão perto. O máximo que consegui ver nessas sortidas foi uma silhueta e uma cauda de possível texugo selvagem a desaparecerem na vegetação. Por isso, mal parei o carro disse aos meus filhos, quase eufórico de felicidade, “Querem ver um texugo? Venham!” Mas não sei porque é que disse isso, uma vez que ver o animal quinado teve bastante mais de deprimente do que de fascinante. Sou um excelente exemplo parental, disso não há dúvida.

 

3. Há pessoas que deixam partes de cima de carros à beira da estrada. E não sou eu.

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À primeira vista, pareceu-me um carro semi-enterrado.

Se calhar, é uma instalação artística.

 

4. Há pessoas de apelido Caca na Albânia.

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Em todos os países há apelidos ou nomes que soam de forma infeliz noutra língua qualquer. Pelo menos um dos meus apelidos deve querer dizer “cocó”, “pila” ou “napperon” noutra língua. Em Gjirokaster, na Albânia, encontrei toda uma secção de rua pertencente à família Caca. A Andrea Caca tem uma escola de condução e a Enkela Caca tem um escritório não se percebe bem de quê. Possivelmente, nem a própria sabe. Por coincidência, foi mesmo em frente aos escritórios Caca que fiquei com o carro alugado todo porco, porque tive a excelente ideia de o deixar debaixo de uma árvore. Adivinhem o que é que os pombos lá deixaram. Eu sei, piada previsível. Mas aconteceu mesmo, como se pode ver:

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5. A água das praias é muito quentinha.

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Aqui, ao contrário das águas gélidas da nossa costa continental, somos nós que decidimos quando é que saímos do mar e não é o mar que nos expulsa pelo frio. Toma e embrulha, Oceano Atlântico!

 

6. Há vacas que viajam na caixa aberta de camionetas ao pôr-do-sol.

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Se calhar não se vê bem, mas é uma vaca que ali vai. Num primeiro instante achei quase poético, uma vaca sozinha na caixa aberta, como se fosse alguém a curtir a liberdade na parte de trás da carripana dum amigo, a apanhar um ventinho na fronha enquanto contempla a paisagem. Depois lembrei-me que as vacas não costumam ter polegares para se agarrarem a coisas e vi-a presa por correntes, insegura e bamboleante na traseira da camioneta, o que tirou bastante da poesia.

PS: Noto um certo padrão nestas minhas considerações sobre animais (vide texugo), que começam com um entusiasmo parvo e acabam em mágoa culposa e desolação (na foto dá para ver também que o vidro do carro está cagado, cortesia dos pombos do escritório Caca).

 

7. Por aqui, Jesus e Maomé dão-se muito bem, aparentemente.

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Este garboso Jesus à direita está à porta de uma igreja, mesmo ao lado daquela mesquita à esquerda. Vimos pelo menos mais um sítio em que igreja e mesquita estavam lado a lado, como Paul McCartney dizia que ébano e marfim conviviam alegremente no mesmo piano – foi aqui, na cidade de Berat:

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Pelos vistos, é prática comum neste país ter igrejas ao pé de mesquitas, às vezes com igreja católica, igreja ortodoxa e mesquita concentradas no mesmo redondel. Não sei se o sentimento que preside a esta relação de vizinhança entre mesquitas e igrejas é inteiramente ecuménico ou se também é para não ficarem umas atrás das outras: “Ai é, puseste aí uma mesquita? Então, já vais ver!” E vice-versa. Mas que dá bom aspecto, dá. Deus/Alá os abençoe.

 

8. Em termos estritamente arquitectónicos, o centro de Tirana parece uma mistura de bairro social com Parque das Nações.

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No meio da turba de prédios relativamente baixos, e com visíveis sinais de degradação, erguem-se bisarmas resplandecentes de arquitectura moderna, como este nosso amigo vestido de lantejoulas.

 

9. Encontrei dois escritores portugueses numa das principais livrarias de Tirana.

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Eça de Queirós tem direito a nome completo, o que soa mais pomposo. Faz lembrar aquelas pessoas, também elas mais pomposas, que à pergunta “Já leu Eça de Queirós?” respondem “Claro que sim, conheço muito bem a obra de José Maria Eça de Queirós.” Pessoas que, por incrível que pareça, não estão assim tão distantes em termos de pomposidade daquelas que dizem apenas “o Eça”, numa de tu cá tu lá com o escritor, como se quisessem esfregar-se de forma carnal no homem do monóculo.

 

10. Os pequenos-almoços misturam fruta e fritos.

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O pequeno-almoço albanês é bonito, generoso e variado. Pelo menos a avaliar pelos que nos ofereceram. Para compensar a variedade de frutas e legumes (tomate, pepino, melão, melancia*), à turca, toma lá fritos pela fresca, à espanhola. E soube que nem ginjas.

Também tivemos direito a ovos estrelados, à inglesa. Leite e torradas à portuguesa é que nem vê-los. E foi difícil explicar aos anfitriões que queríamos mais leite, porque eles não percebiam o conceito de beber leite ao pequeno-almoço. Claramente achavam que o jarrinho anão e ridículo de leite que nos trouxeram era mais que suficiente para as nossas precisões. A importância dada ao leite matinal traça uma nítida fronteira cultural entre os nossos povos.

* Os mais cientificamente rigorosos dirão que isto são tudo frutos (o que inclusive é diferente do termo “frutas”). Mas os mais cientificamente rigorosos conseguem ser pessoas chatas.

A praia como instrumento de tortura

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Cada vez me custa mais entrar no mar quando vou à praia. Sei que nos Açores e na Madeira o mar é mais quentinho, mas ir à água em Portugal Continental é um martírio. O que em miúdo era fácil converteu-se num processo de tortura, porque o mar da maioria das nossas praias continentais é tão gélido que os meus pés ficam com cólicas só de contactar com a água rasa. Os ossos contorcem-se e retorcem-se de formas que nunca imaginei possíveis. É de gabar aquelas pessoas que dizem “Vou só molhar os pés” ou “Vou só molhar os tornozelos”, uma vez que isso, só por si, já é um acto heróico. Nem o Algarve escapa ao panorama gelado da nossa costa continental. No último Verão estive em Lagos – que pode não ser o Sotavento, mas também não é Sagres – e fiquei com medo de apanhar osteoporose súbita só de pôr os presuntos na água.

Para prevenir este tipo de enfermidades, o meu critério actual para entrar na água é ouvir os ossos. Há quem lance búzios para tomar decisões, eu escuto o meu esqueleto. Há gurus que dizem: “procura a resposta dentro de ti.” E é o que eu faço, até à medula. Mal ponho o pé na água é como se ouvisse o Daniel Oliveira a perguntar-me “O que dizem os teus ossos?” E eles geralmente dizem-me: “Qual Daniel Oliveira, o que comenta política?” “Não. O outro.” “Ah, ok”, respondem os ossos. E acrescentam “Chiça, que gelo horrível! Desaparece daqui!” É isso que eles me dizem.

Muitas vezes, só me decido a tomar banho quando o sol bate com tanta força na minha moleirinha que já consigo acender cigarros com a careca. Transformo-me num isqueiro de automóvel, basta encostarem um cigarro à minha calva e já está. Se algum fumador me quiser instalar no carro é uma questão de negociarmos o preço.

Mesmo quando estou determinado a tomar banho, a entrada na água é um processo em câmara muito lenta e por várias etapas. Quando consigo transpor a difícil etapa dos pés, ou seja, quando eles estão anestesiados ao ponto de me poderem ser amputados sem eu dar por isso, lá inicio o processo de molhar lentamente as pernas, centímetro a centímetro, como quem paga uma promessa, até atingir o sítio fatídico, o Cabo das Tormentas de qualquer banho de mar para um indivíduo do sexo masculino: o baixo ventre – que é um eufemismo dos comentadores de futebol para aquilo que os médicos costumam designar de “testículos”, como na frase “parece que o jogador ficou estendido no relvado, agarrado ao baixo ventre”. É nesta região corporal que o choque térmico se faz sentir com maior intensidade. Sei que se ultrapassar este obstáculo ainda é preciso suplantar o frio nas costas, na barriga, nos ombros, em todo o lado, na prática, mas a utopia de dar um mergulho começa a tornar-se possível.

Tudo isto ganha contornos mais humilhantes quando, passado um bocado, vejo a minha tia a entrar na água sem pestanejar. É impressionante, parece um tanque anfíbio. Como se mar e terra fossem uma e a mesma coisa. Não faz sequer um compasso de espera quando chega à água. É um ultraje para todos os que, como eu, estão ali há horas para galgar 10 cm de mar. Os jovens machos que se atiram à maluca para dentro de água para impressionarem as jovens fêmeas não são nada ao pé da minha tia, porque ela entra na água de forma convencional, sentindo o frio da água em cada poro do corpo, e não vacila, enquanto eles fazem mortais e saltam em modo kamikaze, escapando a várias etapas da via-sacra glaciar. Eu gosto muito da minha tia, mas acho que ela já não tem nervos na pele e ainda não reparou. Ela podia estudar focas no árctico em fato de banho e mergulhar ao lado delas no pico do Inverno.

Teoricamente, isto de tomar um banho frio num dia tórrido pode parecer boa ideia, mas depressa descobrimos que não é. E descobrimos também, à beirinha da água, que nos encontramos de repente entre dois habitats inóspitos, o calor massacrante do areal e o mar congelador. Deve ser a forma que arranjámos de viajar dos trópicos aos pólos em pouco tempo. É nessa altura que me ocorrem perguntas como “O que é que eu estou aqui a fazer?” ou “Porque é que fiquei careca? Será culpa do meu avô materno?” E acendo-me um cigarro enquanto penso.

Questionário de Proust por Hitler

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(Adolf Hitler respondeu a este questionário nos inícios de 1945, quando já estava no bunker, segundo indicam vários estudos e diversos palpites)

 

Qual a sua ideia de felicidade perfeita?

Conquistar o mundo e dividir os dois hemisférios em Alemanha de Cima e Alemanha de Baixo.

 

Qual o seu maior medo?

Desembarques.

 

Na sua personalidade, que característica mais o irrita?

Ser profundamente estúpido.

 

E qual o traço de personalidade que mais o irrita nos outros?

A falta de arianismo no trato.

 

Que pessoa viva mais admira?

Eu. Daaahhh!

 

Qual a sua maior extravagância?

Fazer a saudação nazi com os dois braços.

 

Qual o seu estado de espírito neste momento?

Macambúzio.

 

Qual a virtude que pensa estar sobrevalorizada?

O pacifismo. Se eu sobreviver até aos anos 60 ou 70, faço um campo de extermínio só para hippies e Misses Universo.

 

Em que ocasiões mente?

Por norma, só em acordos de paz.

 

O que menos gosta na sua aparência física?

O meu cabelo. Há qualquer coisa nele que não me agrada, mas não sei bem o quê.

 

Entre as pessoas vivas, qual a que mais despreza?

Ninguém em particular. Qualquer judeu serve.

 

Qual a qualidade que mais admira numa pessoa?

A resistência ao Inverno russo.

 

Diga uma palavra ou frase que use com muita frequência.

Vou acabar com a tua raça.

 

O que é ou quem é o maior amor da sua vida?

O maior amor da minha vida é a Eva Braun. Logo a seguir aos Panzers.

 

Onde e quando se sente mais feliz?

Quando me fecho na casa de banho a comer um Pingu. É o meu gelado preferido.

 

Que talento não tem e gostaria de ter?

O talento de perceber onde é que os Aliados desembarcam. (ri-se)

 

Se pudesse mudar algo em si, o que é que seria?

Mudava algo no meu cabelo, mas não sei bem o quê.

 

O que considera ter sido a sua maior realização?

A conquista da França. Essa já ninguém me tira. Tomem e embrulhem, franceses do cara… Lho.

 

Se houvesse vida depois da morte, quem ou o quê gostaria de ser?

Um pargo. Desde que não fosse mulato.

 

Onde prefere morar?

Num bunker não é de certeza. (ri-se feito parvo)

 

Qual o seu maior tesouro?

Os meus sobrinhos. Estava a gozar, é um Panzer dourado que me deram nos anos.

 

O que considera ser o cúmulo da tristeza?

Perder a jogar ao Risco.

 

Qual a sua ocupação favorita?

A da Polónia. É claro que a da França foi muito importante, mas a da Polónia foi especial.

 

A sua característica mais marcante.

Sou muito bom a comunicar com alemães ao microfone.

 

O que mais valoriza nos amigos?

As boas acções. Sobretudo as das indústrias automóvel e farmacêutica.

 

Quais são os seus escritores preferidos?

Gosto muito de vários. Mas o meu preferido sou eu. Daaahhh!

 

Quem é o seu herói de ficção?

A bruxa do “Hansel e Gretel”, que quer pôr as criancinhas no forno. Acho uma personagem bem conseguida.

 

Com que figura histórica mais se identifica?

Com o Napoleão. Embora ele fosse um bocado choninhas.

 

Quem são os seus heróis na vida real?

Todos aqueles que combatem pela Alemanha com bravura e distinção, etc. Quando é que isto acaba?

 

Quais os nomes próprios de que mais gosta?

Erika e Afonso.

 

Qual o seu maior arrependimento?

Um apartamento que comprei em Berlim. Parecia que estava bom, mas gastei uma pipa de massa em obras.

 

Como gostaria de morrer?

Ao lado da minha mulher, com um tiro na cabeça.

 

Qual o seu lema de vida?

Não compres um apartamento à parva.

Estou muito feliz

Hoje é o meu dia de anos e estou muito feliz, porque já recebi os parabéns de duas clínicas dentárias, dois bancos, uma seguradora, uma livraria e da Telepizza. Há aqui uma certa desproporção de clínicas dentárias neste rol, tenho de reconhecer, que se explica pelo facto de eu ter filhos. E de ter dentes, também, por enquanto. Quero agradecer a todas estas instituições ou empresas que tiraram um bocadinho do seu dia para me enviarem um SMS automático. Estarão para sempre guardadas na minha lista de contactos. Desculpem não vos convidar para a minha festa, mas já convidei bastantes pessoas e uma seguradora muito minha amiga, por isso não dá para toda a gente. No entanto, se quiserem enviar-me uma pizza grátis ou uma higienização dentária como prenda, por favor não se inibam. Beijinhos e até para o ano, estou ansioso por ver o que me vão escrever no próximo Sms!

P.S: Confesso que a melhor mensagem nem foi um Sms, foi um email de um banco a dizer “Feliz aniversário! Lembre-se de que tempo é dinheiro.” Não estou a inventar, o email dizia mesmo isto. Foi muito especial para mim.

Hotel 5 Estrelas

Se eu tivesse um hotel chamava-lhe 5 estrelas. Podia ser uma ganda porcaria mas as 5 estrelas estavam garantidas. E depois fazia anúncios a dizer “Já ficou em hotéis de porcaria? Então fique num Hotel 5 estrelas.” Quem lá ia pensava que era melhor, mas não, era a mesma porcaria que os outros.

Leite, o amigo tóxico dos Corn Flakes

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Durante muito tempo acreditei numa das maiores mentiras da humanidade, a de que os Corn Flakes funcionam com leite no mesmo recipiente. Não funcionam. E é um crime aquilo que se está a fazer ao povo Corn Flake um pouco por todo o mundo, ao derramar-lhe aquele líquido branco em cima, despojando-o de toda a dignidade. Aquele líquido ou outro qualquer, diga-se. Uma vez que um Corn Flake na plenitude do seu ser é um floco seco, que se quer rijo e espadaúdo, sem ponta de humidade no corpo cerealífero, para que possa resplandecer em todas as suas capacidades estaladiças. Só assim pode demonstrar o seu real valor. É como as batatas fritas, que têm de ser impecavelmente estaladiças, senão para que é que servem? Será que já houve alguém que dissesse “Prova estas batatas fritas! Vais adorar, são espectacularmente moles!”? As pessoas que disseram isso foram mortas e embalsamadas na hora, para figurarem num museu, numa montra de bizarrias, que é onde elas pertencem.

Alguém nos convenceu de que o leite e os Corn Flakes eram a combinação perfeita, amigos inseparáveis que se dariam lindamente ao pequeno-almoço, ao lanche, fora de horas e até, quiçá, num momento de loucura, à hora do almoço ou do jantar. E vai daí toca de despejar torrentes de líquido branco em cima de pobres flocos inocentes. Quando a verdade é que basta uma gota de leite, mesmo que frio, e é ver o Corn Flake imediatamente a definhar, a amolecer a olhos vistos, a despedir-se do mundo à nossa frente. Oh crueldade floquicida! E o mais revoltante é que há quem goste de torturar os Corn Flakes, despejando-lhes leite quente, ou até a ferver, em cima, com o mesmo desvelo sádico com que na Idade Média se despejava azeite a crepitar na mona dos inimigos.

Eu não culpo o leite. Acredito sinceramente que o leite ama os Corn Flakes e que quer o melhor para eles. Mas está a fazer-lhes mal, com o seu abraço transbordante. O leite tem de perceber que os Corn Flakes dignos são aqueles que se comem à mãozada, como um aperitivo, separados dele. O leite até pode conviver com os Corn Flakes à refeição, desde que sentadinho na sua caneca ou noutra porcaria qualquer. Porque misturado na mesma malga que os Corn Flakes é um amigo tóxico, um assassino, que os reduz a meras tiras gordas e espapaçadas, pedaços de milho frouxo e impotente a boiar num mar branco indiferente e implacável. É isso que o leite quer para o Corn Flake? É isso a amizade? Decerto que não. E se os fabricantes de Corn Flakes fossem pessoas decentes, e quisessem realmente ajudar, punham um aviso nos pacotes a dizer “Atenção: Nunca deve misturar este produto com leite, nem com outro líquido, seu estúpido”.

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